2. Níveis da Realidade – Aspectos históricos: João Clímaco (575-650), Nicolai Hartmann (1882-1950) e Werner Heisenberg (1901-1976)

A ideia de “níveis da Realidade” não é, de facto, nova. O ser humano sentia, desde o início da sua existência, que existem, pelo menos, dois reinos da realidade – um visível e outro invisível.

De um modo mais elaborado, a literatura teológica expressou a ideia de “escada do ser”, correspondente, é claro, à escada da Realidade. A escada de Jacob (Gn 28, 10-12) é disso um famoso exemplo, ilustrado pela iconografia Ortodoxa de maneira tão bela. Existem diversas variantes da escada do ser. A mais famosa encontra-se no livro Climax ou Escada da Ascensão Divina de São João Clímaco (575-650). O autor, também conhecido como João da Escada, era um monge num mosteiro que ficava no Monte Sinai. Existe trinta degraus na escada, descrevendo o processo de theosis. A resistência e a não-resistência são bem ilustradas na escada de João da Escada: o ser humano sobe os degraus, que denotam o esforço do ser humano em evoluir de um ponto de vista espiritual através da resistência aos seus hábitos e pensamentos, mas os anjos, estes mensageiros de Deus, ajudam-no a ultrapassar os intervalos de não-resistência entre os degraus da escada. Esta escada é, claramente, o oposto da Torre de Babel.

O advento da teoria da evolução de Darwin estimulou o pensamento sobre a escada da Realidade. O ser humano sente-se como ser, num certo sentido, radicalmente diferente dos seus irmãos e irmãs, os animais. Em particular, a consciência é vista, especialmente pelas pessoas religiosas, como um fenómeno emergente e misterioso. Contudo, um pensamento agradável não pode substituir o argumento científico. Estaremos nós num nível da Realidade diferentes dos animais? Neste caso, todos os problemas de reducionismo e não reducionismo encontram a sua raiz sentimental.

Na segunda metade do século XX, dois importantes pensadores sobre o problema dos níveis da Realidade são Nicolai Hartmann e Werner Heisenberg.

Nicolai Hartmann (1882-1950) é, de alguma forma, um filósofo esquecido, que teve como estudante Hans-Georg Gadamer e Martin Heidegger como seu sucessor na Universidade de Marburg na Alemanha. Ele elaborou uma ontologia baseada na teoria das categorias. Ele distingue quatro níveis da Realidade: inorgânico, orgânico, emocional e intelectual. Em 1940 postulou quatro leis dos níveis da Realidade: a lei da recorrência, a lei da modificação, a lei do novum e a lei da distância entre níveis [7]. A última lei, postulando que os diferentes níveis não se desenvolvem continuamente, mas em saltos, é de particular interesse no contexto da nossa discussão. Roberto Poli [8], escreveu dois belos artigos de revisão sobre os desenvolvimentos contemporâneos da teoria de Hartmann.

Quase simultaneamente a Hartmann, em 1942, o Prémio Nobel da Física Werner Heisenberg elaborou um modelo muito importante de níveis da Realidade no seu Manuscrito de 1942 [9].

O pensamento filosófico de Heisenberg é estruturado por “dois princípios directores: o primeiro é o da divisão em níveis da Realidade, correspondendo a diferentes modos de objectividade, dependendo da incidência do processo de conhecimento, e o segundo é o da supressão progressiva do papel desempenhado pelos conceitos usuais de espaço e tempo.” [p. 240]

Para Heisenberg, a realidade é “a flutuação contínua da experiência tal como é recolhida pela consciência. A este respeito, não é totalmente identificável com um sistema isolado” [p. 166]. A Realidade não poderia ser reduzida à substância. Para os Físicos de hoje, este facto é óbvio: a matéria é o complexus substância-energia-espaço-tempo-informação.

Tal como foi escrito por Catherine Chevalley na Introdução à tradução Francesa do livro de Heisenberg, “o campo semântico da palavra realidade incluia, para ele, tudo o que nos é dado pela experiência tomada no seu sentido mais amplo, a partir da experiência do mundo até à das modificações de almas, ou da significação autónoma dos símbolos.” [p. 145]

Heisenberg não fala de uma maneira explícita acerca da “resistência” em relação à realidade, mas o seu significado está totalmente presente: “a realidade sobre a qual podemos falar – escreve Heisenberg – nunca é a realidade “em si mesma”, mas apenas uma realidade acerca da qual podemos ter conhecimento, em muitos casos, uma realidade à qual demos forma.” [p. 277] Se a realidade está em constante flutuação, tudo o que podemos fazer é compreender os seus aspectos parciais, graças ao nosso pensamento, extraindo processos, fenómenos e leis. Neste contexto tornar clara a ausência de integralidade: “Nunca podemos chegar a um retrato exacto e completo da realidade” [p. 258]  – escreveu Heisenberg. As provisoriedade das leis físicas é, a partir daqui, algo presente a Heisenberg, mesmo se ele não refere os teoremas de Gödel. Para ele, a realidade é dada pelas “texturas de diferentes tipos de ligação”, como “abundância infinita”, sem qualquer fundamento último. Heisenberg afirma sem cessar, acordando com Husserl, Heidegger, Gadamer e Cassiser (que conhecia pessoalmente), que há que suprimir qualquer distinção rígida entre Sujeito e Objecto. Ele afirma ainda que temos de acabar com a referência privilegiada ao mundo material exterior e que a única abordagem ao sentido da realidade consiste em aceitar a sua divisão em regiões e níveis.

Heisenberg distingue “regiões de realidade” (der Bereich der Wirklichkeit) de “níveis da Realidade” (die Schicht der Wirklichkeit).

“Nós compreendemos por “regiões de realidade” – escreve Heisenberg – […] um conjunto de conexões nomológicas [entre leis gerais, N.d.T.]. Estas regiões são geradas por grupos de relações. Elas sobrepõem-se, ajustam-se, cruzam-se, respeitando sempre o princípio da não-contradição”. De facto, as regiões de realidade são estreitamente equivalentes aos níveis de organização do pensamento sistémico.

Heisenberg está consciente que a simples consideração da existência de regiões de realidade não é satisfatória porque irão colocar as mecânicas clássica e quântica no mesmo plano. Essencialmente, é por esta razão que é levado a reagrupar estas regiões da realidade em diferentes níveis da Realidade.

Heisenberg reagrupa as numerosas regiões da realidade em três níveis distintos.

“É claro – escreve Heisenberg – que a ordenação das regiões tem de substituir a divisão grosseira do mundo numa realidade subjectiva e noutra objectiva, esticando-se a si mesmo entre estes pólos do sujeito e objecto, de tal forma que no seu limite inferior existem as regiões onde podemos objectificar completamente. Na continuação disso, devem-se juntar as regiões onde os estados das coisas não pudessem ser separados do processo de conhecimento durante o qual os identificamos. Finalmente, no cimo, deverão estar os níveis da Realidade onde os estados das coisas são criados apenas em conexão com o processo de conhecimento” [p. 372].

Catherine Chevalley sublinha que Heisenberg suprime a distinção rígida entre “as ciências exactas do mundo real objectivo e as ciências inexactas do mundo subjectivo” e recusa “qualquer hierarquia fundada no privilégio de algumas formas de conexão nomológicas, ou numa região do real considerada mais objectiva que as outras” [p. 152].

O primeiro nível da Realidade, no modelo de Heisenberg, corresponde ao estado das coisas, que são objectificadas independentemente do processo de conhecimento. Ele situa neste primeiro nível a mecância clássica, o electromagnetismo e as duas teorias da relatividade de Einstein, por outras palavras a física clássica.

Um segundo nível da Realidade corresponde ao estado das coisas inseparável do processo de conhecimento. Ele situa aqui a mecânica quântica, a biologia e as ciências da consciência.

Finalmente, um terceiro nível da Realidade corresponde ao estado das coisas criadas em conexão com o processo de conhecimento. Ele situa neste nível da Realidade a filosofia, a arte, a política, as metáforas de “Deus” e as experiências religiosa e inspiradora.

É de notar que a experiência religiosa e a experiência de inspiração são difíceis de assimilar ao nível da Realidade. Essas correspondem à passagem entre os diferentes níveis da Realidade na zona de não-resistência.

Neste contexto, importa sublinhar que Heisenberg mostra um grande respeito pela religião. Em relação ao problema da existência de Deus, ele escreveu: “Esta crença não é de todo uma ilusão, mas apenas a aceitação consciente de uma tensão nunca perceptível na realidade, uma tensão que é objectiva e que avança independentemente dos humanos que somos, e que é, por sua vez, nada mais que o conteúdo da nossa alma, transformada pela nossa alma”. [p. 235] A expressão usada por Heisenberg “uma tensão nunca perceptível na realidade” é, particularmente, significativa no contexto da nossa discussão. Evoca aquilo que chamamos “Real”, distinto da “Realidade”.

Para Heisenberg, o mundo e Deus estão indissoluvelmente ligados: “esta abertura do mundo que é ao mesmo tempo o “mundo de Deus”, finalmente permanece também a maior felicidade que o mundo nos poderia oferecer: a consciência de ser casa.” [p. 387] Ele lembra que a Idade Média fez a escolha da religião e o século XVII fez a escolha da ciência, mas hoje quaisquer escolhas ou critérios de valores desapareceram.

“Os conceitos são, por assim dizer, os pontos privilegiados onde os diferentes níveis da Realidade se entrelaçam” – escreveu Heisenberg. Ele especifica o seguinte: “Quando questionamos as conexões nomológicas da realidade, estas encontram-se em cada momento inseridas num determinado nível da realidade; não poderia ser de todo interpretado de maneira diferente do conceito de “nível” da realidade (é possível falar acerca do efeito de um nível noutro apenas usando o conceito muito geral de “efeito”).

Heisenberg insistia também no papel da intuição: “Apenas o pensamento intuitivo – escreve Heisenberg – pode ultrapassar o abismo que existe entre o sistema de conceitos já conhecido e o novo sistema de conceitos; a dedução formal não oferece uma solução para criar uma ponte sobre o abismo.” [p.261] Mas Heisenberg não tira a conclusão lógica que é imposta pelo desamparo do pensamento formal: apenas a não-resistência das nossas experiências, representações, descrições, imagens, ou formalizações matemáticas podem fazer a ponte por cima do abismo entre as duas zonas de resistência. A não-resistência é, de facto, a chave para compreender a discontinuidade entre dois níveis da Realidade imediatamente vizinhos.


[7] Hartmann, 1940.

[8] Poli, 2001 e 2007.

[9] Heisenberg, 1998