Recentemente uma pessoa anónima chamou-me à atenção para um texto de Quentin Smith onde este apresenta o que considera argumentos cosmológicos de Kalam para o ateísmo [1]. Os argumentos cosmológicos para a existência de Deus possuem duas partes. A primeira estabelece que existe uma causa para existência do universo. A segunda parte que essa causa é Deus ou o seu acto criador.
Quais os argumentos cosmológicos tradicionais? Smith identifica três tipos principais:
- o argumento de Kalam: estabelece que existe uma causa para o início do universo e, na versão teísta, que essa causa é Deus;
- os argumentos Tomistas (a partir de S. Tomás de Aquino): estabelecem a causa que sustém o universo no momento presente;
- o argumento de Leibniz: uma série de seres contingentes (que compõem o universo) requer, necessariamente, uma causa externa não contingente;
…e centra-se no de Kalam.
Diz o argumento cosmológico de Kalam:
1. Tudo o que começa a existir tem uma causa.
2. O universo começou a existir.
3. Logo, o universo tem uma causa.
A versão teísta atribui essa causa a Deus.
A versão ateísta de Q. Smith atribui essa causa ao universo porque esse é “auto-causado” (self-caused). Conclui Q. Smith que (p. 184):
«o argumento cosmológico de Kalam, quando formulado de uma maneira consistente com a ciência contemporânea, não é um argumento para a existência de Deus, mas antes para a sua não-existência, bem como um argumento para uma explicação ateísta completa para o início da existência do universo. Considere-se o início do universo B. O meu argumento cosmológico de Kalam tem como conclusão que o início da existência do universo é auto-causada. “B é auto-causado” não significa o mesmo que “B causa B”, mas antes que “cada parte de B é causada por partes anteriores de B…”»
O texto Q. Smith é trabalhado no sentido de demonstrar esta conclusão. A minha primeira impressão é a de que, do ponto de vista teísta, esta conclusão pressupõe uma visão panteísta da relação entre Deus e o universo. Pois, ao questionar o crente sobre “quem criou Deus?”, ele dirá que Deus é Criador e não criatura, logo ninguém criou Deus. Ora, se ninguém criou Deus implica que Ele é a causa de Si mesmo e daí “auto-causado”. Logo, se aceitarmos as conclusões de Q. Smith, o teísta seria levado a concluir que o universo “é” Deus. Mas será que as conclusões de Smith são inquestionáveis?
Qual a visão que sustenta um universo “auto-causado”? A questão da problemática associada ao início do universo vem do facto de, em ciência contemporânea, o instante t = 0 não existir [2]. Ou seja, a existência do universo tem um início – por assim dizer – “aberto”, cuja consequência para uma leitura ateísta do problema é vê-lo como “internamente causado”. Afirma Q. Smith que «uma vez não existir o primeiro instante e, em vez disso, um número infinito de primeiros intervalos com um certo tamanho cada vez mais breve, “o início do universo” não se refere a um instante ou intervalo. Deve referir-se a muitos instantes ou intervalos» (p. 190). Como resultado científico, só conseguimos ir até ao intervalo ou tempo de Planck, correspondendo este a um intervalo temporal de 0.0…(40 zeros)…01 segundos. Pelo facto de se justificar chamar a este estado de Planck o “início do universo”, Q. Smith considera-o como a versão ateísta do argumento cosmológico de Kalam para explicar como o universo começou a existir. Contudo, não vejo como possa esta versão excluir Deus como Criador daquilo a que chamamos por “era de Planck”, que é a-temporal e a-espacial, pois tanto o tempo como o espaço surgiram apenas a partir daí, deixando de fazer sentido qualquer pergunta sobre um “antes” e um “onde”.
Esta explicação ateísta refere-se apenas a seres que existem contingentemente, ou seja, que podiam não existir. Ora, afirma Smith, «uma vez que a existência de cada estado é causada por estados anteriores, e que a existência de todos estes estados implicam a existência do universo, existe uma explicação para tudo o que existe contingentemente» (p. 191).
Será que a existência de Deus e a possibilidade de uma acção criadora exclui fenómenos contingentes? São muitos os teólogos que dizem que não, pois sem contingência como se poderia afirmar que Deus criou um mundo livre? De tal forma que S. Tomás de Aquino afirmava que um mundo sem contingência é teologicamente inconcebível.
Na argumentação de Smith o princípio que sustenta um universo cujo o início é auto-causado (e que por isso exclui Deus como causador) é o facto de que «a existência de cada estado instantâneo S que pertence ao intervalo I é suficientemente explicado causalmente por estados anteriores» (p. 191), pressupondo uma dialéctica ad infinitum que justifica a exclusão de um acto criador externo de alguém como Deus. Referindo-se às leis da natureza Smith afirma ainda que «Deus não pode causar as leis a serem concretizadas pelos estados, uma vez que estados anteriores já realizaram – por assim dizer – essa tarefa». Mas na visão teísta se tudo o que existe é criação de Deus implica que esse acto criador não ocorre a partir de algo que existe, mas a partir do nada, isto é, da “não-existência”, uma vez que nessa “algo” não faz sentido. Por isso, na terminologia Tomista em que se consideram “estados anteriores” causas secundárias, seria da “não-existência” que Deus os criou e através desses que estados posteriores permitem o desenrolar do universo.
A versão ateísta para um início de universo sem Deus assenta no “como”, e por isso mesmo, permanece ausente a resposta ao “porquê”. Alguns exemplos:
- «A razão pela qual este todo feito de partes existe, em vez de um outro todo possível, consiste em que a existência deste todo é logicamente necessária pela existência das suas partes, e as suas partes existem»
Mas porquê “logicamente necessário”? Qual a causa da existência das partes?
- «Estas partes existem porque a sua existência foi causada por partes anteriores»
Mas porque razão existem “partes anteriores”?
- «Mas porque existe alguma coisa em vez de nada? (…) A razão porque existe nada é que um universo causou a si mesmo o início da sua existência e as leis básicas que o governam instanciaram-se a si mesmas»
Mas porque razão o universo se causou a si mesmo? Ou porque se instanciaram as leis a si mesmas? Para ser honesto intelectualmente, e excluído Deus, a resposta deveria ser “por razão nenhuma”, pois é inconsistente e cíclico que a razão seja a razão de si própria.<
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A causalidade eficiente na versão ateísta de Q. Smith é a causa eficiente de si mesma, pelo que o argumento se torna pouco convincente e corre o risco de ser mera tautologia. Do ponto de vista teísta, a abertura do universo no seu início, justificada pela inexistência de um t = 0, resulta de um acto de auto-doação de Deus, por amor, dando espaço e tempo para que algo distinto de Si possa emergir da “não-existência”. Por ser um acto de auto-doação é, por natureza, um acto aberto, deixando de ser surpreendente que não haja t = 0, muito embora esta seja uma afirmação de carácter teológico-filosófico e não científica que não exclui a última, mas entra em consonância com ela.
Quentin Smith vê nesta abertura inicial da existência do universo algo que é auto-causado, deixando de lado a possibilidade de ser não-causado, ou causado externamente, como por acção de Deus. Contudo, isto apenas nega a existência de um Deus-designer que age a partir do exterior das coisa, mas não um Deus que, como Causa Primeira, age a partir do interior daquilo que é trazido à existência, um Deus próximo de cada causa secundária, aliás, mais próximo do que essa causa relativamente a si mesma. Um Deus criador é um Deus que participa interiormente ao acto criativo, permanecendo distinto dele. Logo, é injustificável concluir a sua inexistência a partir daquilo que acontece no contexto da existência, pois distinto da criatura, tudo o que a ela se refere está intrínseca e intimamente ligado ao acto do Criador.
Para resumir, termino com uma das últimas conclusões de Smith: «a minha “ateísta segunda parte do argumento de Kalam” [o universo começou a existir] implica que não há verdade contingente cuja verdade fique por explicar» (p. 197) … EXCEPTO ESTA!
[1] Quentin Smith, “Kalam Cosmological Arguments for Atheism”, in Cambridge Companion to Atheism (ed. Michael Martin). Cambridge University Press, Cambridge, 2007.
[2] Uma questão que abordo no meu livro PERCURSOS.com sob o título “Porque existe alguma coisa em vez de nada?”, pp. 39-41.
Oi Miguel,
Obrigado por responder nesse post ao meu pedido feito anteriormente. Peço a ti desculpas por não ter usado meu nome no post anterior.
Meu nome, aliás, é Cristiano Oliveira (sou brasileiro).
Bem, sobre seus cometários ao argumento de Quentin Smith, tenho que ler com alguma dedicação, pois ainda sou um pouco lento pra alcançar a profundidade dos raciocícios apresentados.
Apesar disso, e nem sei se é pertinente, quero perguntar a você sobre a autodeclaração de solidez do argumento ateísta de Q. Smith. Ao que me parece, ele proclama alguma vitória, com algum ar de “argumento definitivo”, sobre o mesmo argumento na forma como foi proposto por Willian Lane Craig. Smith está certo? as criticas que ele impôs ao argumento de Craig são pertinentes, na medida em que diz que o argumento teísta de Craig contém petição de princpio?
outra perguntinha mais direta sobre o argumento de Q.Smith: se ele trabalha com a teoria dos conjuntos e sendo que todos intervalos de tempo são realmente infinitos entre seus instantes (do tempo de planc para o t-2s, por exemplo) como chegamos a ter um “hoje”, uma vez que sempre um instante anterior causa um posterior e assim infinitamente dentro do conjunto com tantos intervalos?
Não sei se expliquei adequadamente a minha duvida. Mas confesso a dificuldade intelectual que tenho pra vencer essa ordem de ideia que parece diferenciar a possibilidade de um “infinito real” e um “infinito potencial”.
obrigado, mais uma vez, por responder aminha consulta. Espero poder voltar sempre aqui pra pedir mais e mais explicações sobre esses assuntos sobre os quais você, de forma tão competente, escreve.
Cristiano Oliveira.
Caro Cristiano,
desculpa-me ter demorado a responder. Nem sei se verás ou não o meu comentário. Tive um período mais intenso de trabalho e só há pouco tempo foi oportuno dar um contributo maior aqui pela blogosfera.
Relativamente às críticas que ele colocou ao argumento de Craig, eu penso que se aplicam apenas ao argumento de Craig, cuja abordagem é um entre outras. Smith critica Craig por considerar que um infinito real passado é impossível justifica posteriormente a sua posição com a teoria dos conjuntos aplicada a intervalos de tempo ad infinitum conforme nos “movemos” em direcção ao passado. Eu penso que em primeiro lugar importa saber de que infinito está Craig a falar. Um infinito filosófico, físico, matemático? Pensando no argumento que vem a seguir e na especialidade de Smith (filosofia) poderia ser o filosófico, contudo não creio que tenha potencial para ser um argumento final, senão, eventualmente, relativamente (e exclusivamente) à posição de Craig. Em suma, não universal.
como chegamos a ter um “hoje”, uma vez que sempre um instante anterior causa um posterior e assim infinitamente dentro do conjunto com tantos intervalos?
O “hoje” – penso eu – é equivalente à relacionalidade de todos os instantes ad infinitum tão pequeno quanto eu queira. O “hoje” ou o presente é onde o passado e o futuro de encontram e, muito sinceramente, o “hoje” é tudo o que temos, pois o passado já lá foi e o futuro nada é enquanto não for presente.
Confesso que para entender a dúvida colocada por Smith relativamente ao infinito potencial e o infinito real teria de ler Craig e perceber bem o seu argumento. Penso que poderias fazer isso e depois confrontar com Smith para perceber a sua crítica a Craig.
Convido-te a comentar noutros posts e dar o teu contributo para que juntos pensemos sempre mais e melhor 🙂
Abraço