Haverá um equivalente na biologia moderna à noção bíblica do espírito divino como a origem da vida que transcende os limites do organismo?

Na tradição bíblica, a vida não é uma função do organismo. Aquilo a que chamamos de espírito, não tanto consciência ou inteligência, é uma realidade misteriosa como a imagem usada por S. João sobre o vento

” vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai” (Jo 3, 8).

Ver a vida como algo que tem a sua origem numa fonte transcendente, ou seja, uma origem que está para além do espaço e tempo, é considerado pelos teólogos como um pressuposto indispensável para a esperança associada à ressurreição, ou seja, a nova vida após a morte. Wolfhart Pannenberg explica que

”só se a fonte da vida transcender o organismo é que será concebível que possa ser dada ao indivíduo uma nova vida que não esteja mais separada do espírito divino, a fonte da vida, mas unido permanentemente a ele como um corpo espiritual (1 Cor 15, 42-44)” (Toward a theology of nature, p. 23)

 

 

Esta visão cristã da vida não depende da cultura do momento, mas possui um carácter universal e perdura no tempo. Logo, se esperamos que contenha algo de Verdade intemporal, deveria – de algum modo – ter expressão nas verdades temporais, como são as da ciência biológica que procuram melhorar cada vez mais as descrições sobre o que é a vida.

Na biologia, um organismo não é interpretado como sendo exclusivamente um sistema fechado, mas aberto e sujeito ao seu ambiente. O ambiente é algo que transcende o próprio organismo e, no entanto, influi por fora tanto sobre ele, como a genética influi por dentro. Pensemos no conceito de morfogénese em Michael Polanyi.

Polanyi diz que a morfogénese é o processo pelo qual a estrutura dos seres vivos se desenvolve, semelhante à forma de agir de uma máquina como fronteira em relação às leis da natureza inanimada. Uma condição fronteira é sempre algo exterior a um processo e delimita-o.

Um exemplo. Quando Galileu fez as suas experiências com bolas a rolar por planos inclinados, o ângulo de inclinação não foi deduzido a partir das leis da mecânica clássica, mas escolhido por Galileu. Essa escolha é exterior às leis da mecânica. O mesmo acontece com as condições fronteira. São exteriores às leis envolvidas no interior dos sistemas. Logo, segundo Polanyi, como a estrutura das coisas vivas é uma composição de condições fronteira que balizam as leis que actuam nessas coisas, essa estrutura é exterior às leis da física e da química presentes em cada organismo. Em suma: a morfologia das coisas vivas transcende as leis da física e da química.

Diz ainda Polanyi que

“uma vez reconhecendo (…) que a vida transcende a física e a química, não há razão para suspender o reconhecimento do facto óbvio de que a consciência é um princípio que, fundamentalmente, transcende não só a física e a química, mas também os princípios mecânicos dos seres vivos” (Knowing and Being, p. 233)

As condições fronteira são as nossas condições de possibilidade. Enquanto o “acaso”, a aleatoriedade, são um espaço de oportunidade existente no mundo, as condições de possibilidade são o “campo morfogenético” que conferem sentido a esse espaço de oportunidade, de tal modo que nem tudo é possível de acontecer no mundo. Porém, esse “campo morfogenético” transcende o espaço de oportunidade e não depende dele. Daí que, concordando com Pannenberg,

“a descrição da evolução da vida em termos de uma teoria generalizada de campo deve ser extremamente sugestiva, uma vez que parece oferecer uma linguagem moderna que pode exprimir, possivelmente, a ideia bíblica de espírito divino como a potência da vida que transcende o organismo vivo e, simultaneamente, está intimamente presente no indivíduo.” (Theology of Nature, p. 24)