I. A PESSOA HUMANA CRIADA À IMAGEM DE DEUS

6. De acordo com os testemunhos da Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério, a verdade que os seres humanos são criados à imagem de Deus está no coração da revelação cristã. Os Padres da Igreja e os grandes teólogos da Escolástica reconheceram essa verdade e expuseram as implicações principais. Apesar dessa verdade, como veremos mais adiante, ter sido posta em discussão por alguns influentes pensadores modernos, hoje os teólogos e os investigadores da Bíblia estão em sintonia com o Magistério na redescoberta e na reafirmação da doutrina da imago Dei.


1. A “imago Dei” na Escritura e na Tradição

7. Com algumas raras excepções, a maior parte dos exegetas contemporâneos reconhece a centralidade do tema da imago Dei na revelação bíblica (cf. Gn 1,26-27; 5,1-3; 9,6). Este tema é visto como a chave para uma compreensão bíblica da natureza humana e para todas as afirmações de antropologia bíblica tanto no Antigo como no Novo Testamento. Segundo a Bíblia, a imago Dei constitui quase uma definição do Homem: não é possível compreender o mistério do Homem separado do mistério de Deus.

8. O conceito veterotestamentário do Homem criado à imago Dei reflecte em parte o pensamento do antigo Próximo-Oriente, segundo o qual o rei era a imagem de Deus na terra. A interpretação bíblica é, porém, diferente, enquanto estende o conceito de imagem de Deus a todos os seres humanos. A Bíblia diferencia-se ulteriormente do pensamento do Próximo-Oriente ao ver o Homem como que dirigido antes de tudo não para o culto dos deuses, mas para o cultivo da terra (cf. Gn 2,15). Ligando, por assim dizer, o culto mais directamente com o cultivo da terra, a Bíblia compreende que a actividade humana nos seis dias da semana tem por meta o sábado, dia de bênção e santificação.

9. Dois temas convergem para dar forma à perspectiva bíblica. Em primeiro lugar, é o Homem na sua totalidade que é criado à imagem de Deus. Esta perspectiva exclui as interpretações que fazem residir a imago Dei neste ou naquele outro aspecto da natureza humana (por exemplo, na sua virtude ou no seu intelecto), ou numa das suas qualidades ou funções (por exemplo, a sua natureza sexuada ou o seu domínio sobre a terra). Evitando tanto o monismo como o dualismo, a Bíblia apresenta uma visão do ser humano na qual a dimensão espiritual é vista juntamente com a dimensão física, social e histórica do Homem.

10. Em segundo lugar, o relato da criação do Génesis põe em evidência que o Homem foi criado não como um ser isolado: “Deus criou o Homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher” (Gn 1, 27). Deus colocou os dois primeiros seres humanos em relação um com o outro, cada um com um parceiro do outro sexo. Afirma a Bíblia que o Homem existe em relação com outras pessoas, com Deus, com o mundo e consigo mesmo. De acordo com este conceito, o Homem não é um indivíduo isolado, mas pessoa: um ser essencialmente relacional. Longe de vincular um actualismo puro que lhe negasse o status ontológico permanente, o carácter fundamentalmente relacional da própria imago Dei constitui a sua estrutura ontológica e serve de fundamento para o exercício da liberdade e da responsabilidade.

11. Segundo o Novo Testamento (NT) a imagem criada presente no AT deve ser completada na imago Christi. No desenvolvimento neotestamentário deste tema emergem dois elementos distintivos: o carácter cristológico e trinitário da imago Dei, e o papel da mediação sacramental na formação da imago Christi.

12. Como a imagem perfeita de Deus é o Cristo em pessoa (2 Cor 4,4; Cl 1,15; Hb 1,3), o Homem deve ser a ele conformado (Rm 8,29) para se tornar filho do Pai através do poder do Espírito Santo (Rm 8,23). Com efeito, para “tornar-se” imagem de Deus, é indispensável que o Homem participe activamente na sua transformação segundo o modelo da imagem do Filho (Cl 3,10), que manifesta a própria identidade através do movimento histórico desde a sua Encarnação até a Glória. Segundo o modelo traçado em primeiro lugar pelo Filho, a imagem de Deus em cada pessoa é constituída pelo seu próprio percurso histórico que parte da criação, passando pela conversão do pecado, até à salvação e ao seu cumprimento. Precisamente como Cristo manifestou o seu senhorio sobre o pecado e sobre a morte através de sua Paixão e Ressurreição, assim cada Homem alcança a própria soberania através do Cristo no Espírit
o Santo – não somente uma soberania sobre a terra e sobre o reino animal (como afirma o AT) – mas principalmente sobre o pecado e sobre a morte.

13. Segundo o NT, esta transformação na imagem de Cristo efectua-se através dos sacramentos, em primeiro lugar como efeito da iluminação da mensagem de Cristo (2 Cor 3,18-4,6) e do baptismo (1 Cor 12,13). A comunhão com Cristo deriva da fé nele e do baptismo, através do qual o fiel morre para o Homem velho mediante o Cristo (Gl 3,26-28) e reveste-se do Homem novo (Gl 3,27; Rm 13,14). A Penitência, a Eucaristia e os outros Sacramentos confirmam-nos e fortalecem-nos nesta transformação radical, que ocorre segundo o modelo da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. Criados à imagem de Deus e aperfeiçoados à imagem de Cristo graças ao poder do Espírito Santo nos Sacramentos, somos amorosamente abraçados pelo Pai.

14. A visão bíblica da imagem de Deus continuou a ocupar um lugar de realce na antropologia cristã dos Padres da Igreja e na teologia posterior, até ao início da época moderna. Para demonstrar a centralidade deste tema, vejamos como os primeiros cristãos buscaram interpretar a proibição bíblica das representações artísticas de Deus (cf. Ex 20,2-3; Dt 27,15) à luz da Encarnação. Com efeito, o mistério da Encarnação demonstrou a possibilidade de representar Deus-feito-homem na sua realidade humana e histórica. Os argumentos que nas disputas iconoclásticas dos séculos VII e VIII se aduziram em defesa da representação artística do Verbo Encarnado e dos eventos da salvação baseavam-se sobre uma profunda compreensão da união hipostática, que não admitia separar na “imagem” o divino do humano.

15. A teologia patrística e a teologia medieval em certos aspectos afastaram-se da antropologia bíblica e, em alguns outros a desenvolveram ainda mais. A maior parte dos representantes da tradição, por exemplo, não aderiu plenamente à visão bíblica que identificava a imagem com a totalidade do Homem. Um desenvolvimento significativo do relato bíblico é dado pela distinção de Santo Ireneu entre imagem e semelhança, segundo a qual “imagem” denota uma participação ontológica (methexis) e “semelhança” (mimêsis) uma transformação moral (Adv. Haer. V,6,1; V,8,1; V,16,2). De acordo com Tertuliano, Deus criou o Homem à sua imagem e infundiu nele o seu sopro vital enquanto semelhança sua. Enquanto a imagem não poderá nunca ser destruída, a semelhança pode perder-se pelo pecado (Bapt. 5,6.7). Santo Agostinho não assumiu esta distinção, mas apresentou uma versão mais personalista, psicológica e existencial da imago Dei. Para ele, a imagem de Deus no Homem tem estrutura trinitária, que reflecte ou a estrutura tripartida da alma humana (espírito, autoconsciência e amor) ou os três aspectos da psique (memória, inteligência e vontade). Segundo Agostinho, a imagem de Deus no Homem orienta-o para Deus na invocação, no conhecimento e no amor (Confissões I,1,1).

16. Em Tomás de Aquino, a imago Dei possui uma natureza histórica, enquanto passa por três fases: a imago creationis (naturae), a imago recreationis (gratiae) e a imago similitudinis (gloriae) (S. Th. I q. 93 a. 4). Para o Aquinatense, a imago Dei é o fundamento da participação na vida divina. A imagem de Deus realiza-se principalmente num acto de contemplação no intelecto (S. Th. I q. 93 a.4 e 7). Esta concepção distingue-se da de São Boaventura, para quem a imagem realiza-se principalmente através da vontade no acto religioso do Homem (Sent. II d. 16 a. 2 q. 3).
Mantendo-se nesta mesma visão mística, mas com maior audácia, o Mestre Eckhart tende a espiritualizar a imago Dei, pondo-a no vértice da alma e separando-a do corpo (Quint. I,5,5-7; V, 6.9s).

17. As controvérsias relacionadas com a Reforma demonstram a importância que tinha a teologia da imago Dei tanto para os teólogos protestantes como para os católicos. Os reformadores acusavam os católicos de reduzir a imagem de Deus a uma “imago naturae”, que apresentava uma concepção estática da natureza humana e encorajava o pecador a constituir-se diante de Deus. Por seu turno, os católicos acusavam os reformadores de negar a realidade ontológica da imagem de Deus, reduzindo-a a uma mera relação.
Além disso, os reformadores insistiam sobre o facto de que a imagem de Deus estava corrompida pelo pecado, enquanto os teólogos católicos viam o pecado como uma ferida da imagem de Deus no Homem.