3. A responsabilidade para com a integridade biológica dos seres humanos
81. A tecnologia moderna, juntamente com os mais recentes desenvolvimentos da bioquímica e da biologia molecular, continua a oferecer à medicina contemporânea novas possibilidades quanto a diagnósticos e terapias. Essas técnicas não só possibilitam novas terapias, mais eficazes, mas abrem também caminho para a possibilidade de modificar o próprio Homem. O facto destas tecnologias estarem disponíveis e praticáveis torna ainda mais urgente questionar-se sobre os limites que se devem fixar à tentativa do Homem de se re-criar a si mesmo. O exercício de uma responsável administração no terreno da bioética exige uma atenta reflexão moral sobre o alcance das tecnologias que podem incidir sobre a integridade biológica dos seres humanos. Nesta matéria podemos oferecer somente algumas breves indicações dos desafios morais especificamente levantados pelas novas tecnologias e alguns dos princípios que devem ser aplicados, se quisermos exercitar uma administração responsável sobre a integridade biológica dos seres humanos criados à imagem de Deus.
82. O direito de dispôr plenamente do próprio corpo significaria que a pessoa pode usar o seu corpo como um meio para alcançar um fim que ele próprio escolheu; poderia, então, substituir algumas partes do próprio corpo, modificá-lo ou pôr-lhe um fim. Por outras palavras, uma pessoa poderia determinar a finalidade ou o valor teleológico do corpo. O direito de dispôr de uma coisa qualquer só se estende a objectos que tenham valor meramente instrumental e nunca a objectos que são um bem em si mesmos, ou seja, que sejam um fim em si mesmos. A pessoa humana, sendo criado à imagem de Deus, é em si mesma um bem como tal. A questão, tal como se perfila na bioética, é se este raciocínio pode ser aplicado também aos diversos níveis detectáveis na pessoa humana: o nível biológico-somático, o emotivo e o espiritual.
83. A prática clínica quotidiana aceita geralmente que se possa dispôr de forma limitada do corpo e de certas funções mentais, para preservar a vida, como, por exemplo, no caso da amputação de um membro ou da extracção de um órgão. Intervenções deste tipo são permitidas pelo princípio da totalidade e integridade (conhecido também como princípio terapêutico). O sentido desse princípio é que a pessoa humana deve desenvolver, proteger e preservar todas as suas funções físicas e mentais de modo que 1) as funções inferiores nunca sejam sacrificadas excepto para um melhor funcionamento da pessoa na sua totalidade, e mesmo neste caso, procurando sempre compensar a função sacrificada; e 2) as faculdades fundamentais que pertencem essencialmente ao ser humano não devem nunca ser sacrificadas excepto quando necessário para salvar a vida.
84. Os diversos órgãos e membros que juntos constituem uma unidade física são – enquanto partes integrantes – completamente absorvidos no corpo e a este subordinados. Mas valores inferiores não podem ser simplesmente sacrificados em benefício dos superiores: todos esses valores em conjunto constituem uma unidade orgânica e são mutuamente dependentes. Como o corpo, enquanto parte intrínseca da pessoa humana, é um bem em si mesmo, as faculdades humanas fundamentais só podem ser sacrificadas para preservar a vida. Contudo, a vida é um bem fundamental que interessa à totalidade da pessoa humana. Na ausência do fundamental bem da vida, os valores – como, por exemplo, a liberdade – que são por si mesmos superiores à própria vida cessam de existir. Como o Homem foi criado à imagem de Deus também na sua corporeidade, não lhe cabe o direito de dispôr plenamente da sua própria natureza biológica. O próprio Deus e o ser criado à sua imagem não podem ser objecto de qualquer acção humana arbitrária.
85. Para que se possa aplicar o princípio da totalidade e integridade, é necessário atender às seguintes condições: 1) deve tratar-se de uma intervenção sobre aquela parte do corpo que é ou atingida ou causa directa de uma situação perigosa para a vida; 2) não deve haver outras alternativas para salvar a vida; 3) deve existir uma probabilidade de êxito proporcional aos riscos e às consequências negativas da intervenção; 4) deve haver o consentimento do paciente. Os efeitos colaterais negativos derivados da intervenção podem ser justificados com base no princípio do duplo efeito.
86. Alguns tentaram interpretar esta hierarquia de valores de tal modo que legitimasse o sacrifício de funções inferiores, como, por exemplo, a capacidade procriadora, para a salvaguarda de valores mais altos, como, por exemplo, a saúde mental ou melhor relacionamento com os outros. Todavia, a faculdade de procriar é aqui sacrificada para manter elementos que podem ser essenciais para a pessoa enquanto totalidade funcional, mas não são essenciais à pessoa como totalidade viva. Na realidade, a pessoa como totalidade funcional é violada pela perda da faculdade reprodutiva, e num momento em que a ameaça à sua saúde mental não é iminente e podendo ser afastada de outro modo. Para além disso, esta interpretação do princípio da totalidade introduz a possibilidade de sacrificar uma parte do corpo em favor de interesses sociais. Com base no mesmo raciocínio
, poderia justificar-se a esterilização por motivos de eugenia, tendo em vista os interesses do Estado.
, poderia justificar-se a esterilização por motivos de eugenia, tendo em vista os interesses do Estado.
87. A vida humana é fruto do amor conjugal – a doação recíproca, total, definitiva e exclusiva entre Homem e mulher – reflexo do dom de amor entre as três Pessoas Divinas, que se torna fecundo na criação, e do dom de Cristo à sua Igreja, que se torna fecundo no nascimento do novo Homem. O facto de que uma total doação do Homem diga respeito tanto ao seu espírito como ao seu corpo está na base da inseparabilidade dos dois significados do acto conjugal, que 1) é autêntica expressão do amor esponsal ao nível físico e 2) chega à plena consumação através da procriação no período fértil da mulher (Humanae vitae 12; Familiaris consortio 32).
88. A doação recíproca entre Homem e mulher, ao nível da intimidade sexual, fica incompleta pela contracepção ou pela esterilização. Para além disso, se uma técnica usada não auxilia o acto conjugal a atingir o seu objectivo, mas substitui esse acto, de modo que a concepção ocorre por intervenção de uma terceira parte, então a criança assim procriada não nasce do acto conjugal, que é a expressão autêntica da doação recíproca dos pais.
89. No caso da clonagem – a produção de indivíduos geneticamente idênticos mediante a divisão do embrião ou através do transplante do núcleo – a criança é gerada de modo assexuado e não pode ser de modo algum considerada fruto de um recíproco dom de amor. A clonagem, envolvendo a produção de um grande número de pessoas a partir de um só indivíduo, representa uma violação da identidade da pessoa humana. A comunidade humana que, como já observamos, deve ser também concebida como imagem do Deus Uno e Trino, exprime na sua variedade algo das relações das três Pessoas Divinas na sua unicidade que, embora sendo da mesma natureza, marca as suas mútuas diferenças.
90. A engenharia genética da linha germinativa com fim terapêutico seria em si mesma aceitável, se não fosse difícil imaginar de que modo uma intervenção desse tipo possa ser feita sem riscos desproporcionais, sobretudo na primeira fase experimental, como, por exemplo, a enorme perda de embriões e a incidência de efeitos indesejados, sem recorrer ao uso de técnicas reprodutivas. Uma alternativa possível seria recorrer à terapia génica nas células estaminais que produzem os espermatozóides do Homem, de modo a que este possa conceber uma prole saudável, utilizando o seu próprio sémen no acto conjugal.
91. Evoluções na engenharia genética tendem a melhorar algumas características específicas. A ideia de Homem como “co-criador” com Deus poderia ser usada para justificar a gestão da evolução humana mediante esse tipo de intervenção. Mas isto significaria que o Homem tem o pleno direito de dispôr da sua própria natureza biológica. Modificar a identidade genética do Homem enquanto pessoa humana através da criação de um ser infra-humano é radicalmente imoral. O recurso a modificações genéticas para produzir um ser supra-humano ou um ser com faculdades espirituais essencialmente novas é inconcebível, dado que o princípio da vida espiritual do Homem – que dá forma à matéria no corpo da pessoa humana – não é um produto das mãos humanas e não está sujeito à engenharia genética. A unicidade de cada pessoa humana, em parte constituída pelas suas características biogenéticas, e desenvolvida mediante a educação e o crescimento, pertence-lhe intrinsecamente e não pode ser instrumentalizada para melhorar algumas dessas características. Um Homem só pode melhorar verdadeiramente realizando de modo mais pleno a imagem de Deus nele, unindo-se a Cristo e imitando Cristo. Tais modificações, em todo o casos, iriam violar a liberdade de pessoas futuras que não tomaram parte em decisões que lhes determinam as características e a estrutura física de modo significativo e talvez irreversível. A terapia génica, tendo como fim aliviar patologias congénitas, como a síndrome de Down, certamente exerceria um impacto sobre a identidade da pessoa envolvida relativamente ao seu aspecto e às suas capacidades intelectuais, mas essa modificação ajudaria a pessoa a dar plena expressão à sua verdadeira identidade, bloqueada por um gene defeituoso.
92. As intervenções terapêuticas servem para restaurar as funções físicas, mentais e espirituais, colocando a pessoa no centro e respeitando plenamente a finalidade dos diversos níveis no Homem em relação aos da pessoa. Possuindo um carácter terapêutico, a medicina que se coloca ao serviço do Homem e do seu corpo enquanto fins em si mesmos, respeita em ambos a imagem de Deus. Segundo o princípio da proporcionalidade, as terapias extraordinárias que tenham por fim prolongar a vida, devem ser utilizadas quando há uma justa proporção entre os resultados positivos delas esperados e os possíveis danos para o paciente. Onde porém estiver ausente essa proporcionalidade, pode ser suspensa a terapia, mesmo que seja abreviada a vida do paciente. Na terapia paliativa uma morte antecipada em consequência da administração de analgésicos representa um efeito indirecto que, como todos os efeitos colaterais em medicina, pode ser incluída no princípio do duplo efeito, sempre que a dosagem for calibrada para a supressão de sintomas dolorosos e não para pôr fim à vida do paciente.
93. Dispôr da morte é de facto o modo mais radical de dispôr da vida. No suicídio assistido, na eutanásia directa e no aborto directo – por mais trágicas e complexas qu
e pareçam as situações da pessoa – a vida física é sacrificada por uma finalidade auto-determinada. Na mesma categoria encontram-se a instrumentalização do embrião, que ocorre quer na experimentação sobre os embriões que no diagnóstico de pré-implante.
e pareçam as situações da pessoa – a vida física é sacrificada por uma finalidade auto-determinada. Na mesma categoria encontram-se a instrumentalização do embrião, que ocorre quer na experimentação sobre os embriões que no diagnóstico de pré-implante.
94. O nosso estado ontológico de criaturas feitas à imagem de Deus impõe determinados limites à nossa capacidade de dispôr de nós mesmos. O soberania que nos é outorgada não é ilimitada: exercemos uma certa soberania participada sobre o mundo criado e, afinal, temos de prestar contas do nosso serviço ao Senhor do universo. O Homem é criado à imagem de Deus, mas ele mesmo não é Deus.