2. A responsabilidade pelo mundo criado
71. Os vertiginosos progressos científicos e tecnológicos dos últimos cento e cinquenta anos tiveram como resultado uma situação radicalmente nova para os seres que vivem neste planeta. A maior abundância material, qualidade de vida mais elevada, melhores condições de saúde e uma esperança de vida maior fizeram-se acompanhar pela poluição atmosférica e das águas, pelo problema dos detritos industriais tóxicos, pela exploração e às vezes pela destruição de habitat delicados. Nesta situação, os seres humanos desenvolveram uma consciência mais apurada dos laços orgânicos que os unem aos outros seres vivos. Contempla-se agora a natureza como uma biosfera em que todos os seres formam uma rede de vida, complexa e porém cuidadosamente organizada. Além disso, foi agora reconhecida a existência de limites tanto para os recursos naturais disponíveis como também para a capacidade da natureza para reparar os danos a ela causados através da incessante exploração de seus recursos.
72. Infelizmente, uma das consequências desta nova sensibilidade ecológica é que o cristianismo foi por alguns acusado de ser em parte responsável pela crise ambiental, precisamente por ter realçado a posição do Homem, criado à imagem de Deus, para governar a criação visível. Chegam alguns críticos ao ponto de dizerem que na tradição católica falta uma sólida ética ecológica por considerar o Homem essencialmente superior ao resto do mundo natural, e que para tal ética será necessário voltar-se para as religiões asiáticas e tradicionais.
73. Essa crítica, porém, baseia-se numa leitura profundamente errada da teologia cristã da criação e da imago Dei. Falando da necessidade de uma “conversão ecológica”, afirmou João Paulo II: “O senhorio do Homem não é absoluto, mas ministerial […], é a missão não de um senhor absoluto e inquestionável, mas de um ministro do Reino de Deus” (Discurso, 17/01/01). É possível que uma maneira errada de compreender este ensinamento tenha levado alguns a agirem de modo irresponsável face ao ambiente natural, mas a doutrina cristã sobre a criação e sobre a imago Dei jamais estimulou a exploração descontrolada e o esgotamento dos recursos naturais. As observações de João Paulo II reflectem a crescente atenção com a qual o Magistério acompanha a crise ecológica, preocupação que encontra as suas raízes já nas Encíclicas sociais dos modernos pontificados. Na perspectiva desse ensino, a crise ecológica é um problema humano e social, ligado à violação dos direitos humanos e à desigualdade no acesso aos recursos naturais. O Papa João Paulo II recapitulou esta tradição do magistério social da Igreja quando escreveu na Centesimus annus: “Igualmente preocupante é a questão ecológica, juntamente com o problema do consumismo a ela estreitamente conexo. O Homem, dominado pelo desejo de ter e gozar, mais que pelo desejo de ser e crescer, consome de modo exagerado e desordenado os recursos da terra e a sua própria vida. Na raiz da insensata destruição do ambiente natural está um erro antropológico, infelizmente muito difundido na nossa época. O Homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, em certo sentido, criar o mundo com o seu próprio trabalho, esquece que este se desenvolve sempre na base da primeira original doação das coisas por Deus” (CA 37).
74. A teologia cristã da criação contribui de modo directo para a solução da crise ecológica, ao afirmar a verdade fundamental que a criação visível é, ela mesma, dom divino, o “dom original”, que fixa um “espaço” de comunhão pessoal. Poder-se-ia, com efeito, dizer que uma correcta teologia cristã da ecologia é dada pela aplicação da teologia da criação. Observe-se como o termo “ecologia” combina as duas palavras gregas oikos (casa) e logos (palavra): o ambiente físico da existência humana poderia ser visto como uma espécie de “casa”, “habitação” para a vida humana. Considerando-se que a vida íntima da Santíssima Trindade é uma vida de comunhão, o acto divino da criação é a produção gratuita de parceiros que poderão compartilhar essa comunhão. Pode-se dizer, neste sentido, que a divina comunhão agora encontrou a sua “habitação” no mundo criado. Por esse motivo, pode-se falar do cosmos como um lugar de comunhão pessoal.
75. A cristologia e a escatologia podem em conjunto iluminar ainda mais essa verdade. Na união hipostática da Pessoa do Filho com a natureza humana, Deus vem a este mundo e assume a corporeidade que Ele mesmo criou. Na Encarnação, através do Filho Unigénito, nascido da Virgem Maria através do poder do Espírito Santo, o Deus Uno e Trino cria a possibilidade de uma comunhão íntima e pessoal com os seres humanos. Visto que Deus quis benignamente elevar as pessoas criadas à participação dialógica na sua vida, Ele deve, por assim dizer, descer até o nível da criatura. Alguns teólogos falam desta divina condescendência como de uma forma de “hominização” mediante a qual Deus torna livremente possível a nossa divinização. Deus não só manifesta a sua glória no cosmos através de actos teofânicos, mas também assumindo-lhe a corporeidade. Nesta perspectiva cristológica, a “hominização” de Deus é um acto de solidariedade, não só com as pessoas criadas, mas com todo o universo criado e o seu destino histórico. Não só, mas na perspectiva escatológica, a segunda vinda de Cristo pode ser vista como o evento em que Deus fixa fisicamente morada no universo levado à perfeição, que leva a pleno termo o plano original da criação.
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76. Longe de incentivar uma exploração desatenta e antropocêntrica do ambiente natural, a teologia da imago Dei afirma o papel crucial do Homem na realização deste fixar a eterna morada no universo levado à perfeição por Deus. Os seres humanos, pelo plano divino, são os administradores dessa transformação pela qual anseia todo o mundo criado. Não só os seres humanos, mas todo o conjunto da criação visível é chamado a participar da vida divina. “Bem sabemos como toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente. Não só ela. Também nós, que possuímos as primícias do Espírito, nós próprios gememos no nosso íntimo, aguardando a adopção filial, a libertação do nosso corpo” (Rm 8,22-23). Segundo a perspectiva cristã, a nossa responsabilidade ética para com o ambiente natural, “morada da nossa existência”, encontra portanto as suas raízes numa profunda compreensão teológica da criação visível e do nosso lugar no seu interior.
77. Referindo-se a esta responsabilidade numa importante passagem da Evangelium vitae, eis o que escreveu João Paulo II: “Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2,15), o Homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente da vida, ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da sua dignidade pessoal […]. É a questão ecológica – desde a preservação do «habitat» natural das diversas espécies animais e das várias formas de vida, até à «ecologia humana» propriamente dita – que, no texto bíblico, encontra luminosa e forte indicação ética para uma solução respeitosa do grande bem da vida, de toda a vida […]. nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas” (EV 42).
78. Em última análise, deve-se observar que a teologia não poderá oferecer uma solução técnica para a crise ambiental. Todavia, como vimos também, a teologia pode ajudar-nos a ver o nosso ambiente natural tal como Deus o vê, como o espaço de uma comunhão pessoal em que os seres humanos, criados à imagem de Deus, devem procurar a comunhão recíproca e a perfeição final do universo visível.
79. Esta responsabilidade estende-se ao mundo animal. Os animais são as criaturas de Deus e, segundo as Escrituras, Ele envolve-os com providenciais cuidados (cf. Mt 6,26). Os seres humanos deveriam acolhê-los com gratidão e dar graças a Deus pela sua existência, adoptando mesmo uma atitude de agradecimento em relação a cada elemento do mundo criado. Com a sua própria existência, os animais bendizem a Deus e dão-lhe glória: “Todas as aves do céu, bendizei o Senhor […]. Todos os animais, selvagens e domésticos, bendizei o Senhor” (Dn 3,80-81). Além disso, a harmonia que o Homem deve estabelecer ou restabelecer, no conjunto da criação, inclui também a sua relação com os animais. Quando Cristo vier na sua glória, ele “recapitulará” toda a criação num momento de harmonia, escatológico e definitivo.
80. Apesar disso, existe uma diferença escatológica entre os seres humanos e os animais, dado que apenas o Homem é criado à imagem de Deus, e Deus deu-lhe o domínio sobre o mundo animal (cf. Gn 1,26-28; Gn 2,19-20). Reflectindo a tradição cristã em relação ao justo uso dos animais, eis o que afirma o Catecismo da Igreja Católica: “Deus confiou os animais ao governo daquele que foi criado à sua imagem. É, portanto, legítimo servirmo-nos dos animais para o alimento e a confecção de vestuário. Podemos domesticá-los para qur sirvam o Homem nos seus trabalhos e lazeres” (CdIC 2417). Este trecho cita, além disso, o legítimo uso de animais para a experimentação médica e científica, reconhecendo sempre porém que “é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais” (CdIC 2418). Portanto, seja qual for o modo de servir-se dos animais, é necessário deixar-se sempre guiar pelos princípios já ilustrados; a soberania humana sobre o mundo animal é essencialmente uma administração da qual os seres humanos deverão prestar contas a Deus, que é o Senhor da criação no sentido mais autêntico.