1. A ciência e a administração do conhecimento

62. A cultura humana, em todas as épocas e em quase todas as sociedades, caracterizou-se pela tentativa de compreender o universo. Na perspectiva da fé cristã, este esforço é um perfeito exemplo do serviço que os seres humanos prestam de acordo com o plano de Deus. Sem abraçar um concordismo, já desacreditado, os cristãos têm a responsabilidade de colocar os modernos conhecimentos científicos do universo no âmago da teologia da criação. A posição dos seres humanos na história deste universo em contínuo processo evolutivo, assim como foi reconstruído pelas ciências modernas, só pode ser vista na sua realidade completa à luz da fé, como uma história pessoal do compromisso do Deus Uno e Trino com as pessoas, suas criaturas.

63. Segundo a tese científica largamente aceite, há 15 mil milhões de anos o universo conheceu uma explosão que recebeu o nome de Big Bang, e desde então continua a expandir-se e a arrefecer. Mais tarde verificaram-se gradualmente as condições necessárias para a formação de átomos e, posteriormente, deu-se a condensação das galáxias e das estrelas, seguida, cerca de uns dez mil milhões de anos depois, pela formação dos planetas. No nosso sistema solar e na terra (formada há cerca de 4,5 bilhões de anos) criaram-se as condições favoráveis ao aparecimento da vida. Se, por um lado, os cientistas acham-se divididos quanto à explicação que se deve dar à origem da primeira vida microscópica, a maior parte deles, porém, concorda que o primeiro organismo habitou este planeta há cerca de 3,5-4 mil milhões de anos. Como foi demonstrado que todos os organismos vivos da terra estão geneticamente ligados entre si, é praticamente certo que todos eles descendam desse primeiro organismo. Os resultados convergentes de inúmeros estudos nas ciências físicas e biológicas fornecem um amontoado de evidências de uma certa teoria da evolução para explicar o desenvolvimento e a diversificação da vida na terra, embora ainda existam divergências de opiniões no que toca aos tempos e aos mecanismos do processo evolutivo. Sem dúvida, a história das origens humanas é complexa e passível de revisões, mas a antropologia física e a biologia molecular levam ambas a considerar que a origem da espécie humana deve ser procurada na África há uns 150 mil anos, numa população de hominídeos de ascendência genética comum. Seja qual for a sua explicação, o factor decisivo nas origens do Homem foi o contínuo aumento das dimensões do cérebro que resultou finalmente no homo sapiens. Com o desenvolvimento do cérebro humano, a natureza e a taxa de evolução foram modificadas para sempre: com a introdução de factores unicamente humanos como a consciência, a intencionalidade, a liberdade e a criatividade, a evolução biológica refundiu-se como uma evolução de tipo social e cultural.

64. O Papa João Paulo II, há alguns anos, afirmou que “novos conhecimentos científicos levam a não considerar mais a teoria da evolução como mera hipótese. É digno de nota o facto de que essa teoria se tenha progressivamente imposto à atenção dos investigadores, posteriormente a uma série de descobertas feitas nas diversas disciplinas do saber” (“Mensagem à Pontifícia Academia das Ciências sobre a evolução”, 1996). Em linha com aquilo que já tinha sido afirmado pelo magistério pontifício do século XX em matéria de evolução (em particular a Encíclica Humani generis, de Pio XII), a mensagem do Santo Padre João Paulo II reconhece que há “diversas teorias da evolução”, que são “materialistas, reducionistas e espiritualistas” e, portanto, incompatíveis com a fé católica. Daí se infere que a mensagem de João Paulo II não pode ser lida como aprovação geral de todas as teorias da evolução, inclusíve aquelas de origem neodarwinista, que negam explicitamente que a Providência Divina possa ter tido algum papel verdadeiramente causal no desenvolvimento da vida no universo. Focando principalmente na evolução, enquanto “diz respeito à concepção do Homem”, a mensagem de João Paulo II mostra-se todavia especificamente crítica em face das teorias materialistas das origens do Homem, e insiste sobre a importância da filosofia e da teologia para uma correcta compreensão do “salto ontológico” para o humano, que não se pode explicar em termos puramente científicos. O interesse da Igreja pela evolução concentra-se, portanto, em particular na “concepção do Homem” que, enquanto criado à imagem de Deus, “não deve ser subordinado como um puro meio ou como um mero instrumento nem à espécie nem à sociedade”. Como pessoa criada à imagem de Deus, o ser humano é capaz de tecer relações de comunhão com outras pessoas e com o Deus Uno e Trino, como também exercer senhorio e serviço no universo criado. A implicação destas afirmações é que as teorias da evolução e da origem do universo revestem-se de um interesse teológico particular quando tocam as doutrinas da criação ex nihilo e a criação do Homem à imagem de Deus.

65. Vimos que as pessoas são criadas à imagem de Deus, para que possam tornar-se participantes da natureza divina (cf. 2 Pd 1,3-4), tomando assim parte na comunhão da vida trinitária e no domínio divino sobre a criação visível. No coração do acto divino da criação está o desejo divino de criar espaço para as pessoas criadas na comunhão das Pessoas incriadas da Santíssima Trindade, mediante participação adoptiva em Cristo. Mais ainda, a ascendência comum e a unidade natural do género humano são a base de uma unidade em graça das pessoas humanas redimidas, tendo como Cabeça o Novo Adão, na comunhão eclesial das pessoas humanas unidas entre si e com o Pai e o Filho e o Espírito Santo, incriados. O dom da vida natural é o fundamento do dom da vida de graça. Daí se segue que se a verdade central se refere a uma pessoa que age livremente, é impossível falar de uma necessidade ou de um imperativo da cria
ção e, em última análise, não é correcto falar do Criador como uma força, uma energia ou causa impessoal. A criação ex nihilo é a acção de um agente pessoal transcendente, que opera livre e intencionalmente, tendo por meta a realização das finalidades totalizadoras do empenho pessoal. Na tradição católica, a doutrina da origem dos seres humanos articula a verdade revelada desta visão fundamentalmente relacional ou personalista de Deus e da natureza humana. A exclusão do panteísmo e do emanacionismo na doutrina da criação pode ser interpretada, na sua raiz, como uma maneira de defender esta verdade revelada. A doutrina da criação imediata ou especial de cada alma singular humana não só encara a descontinuidade ontológica entre matéria e espírito, mas lança também as bases para uma divina intimidade que abrange cada pessoa humana individual desde o primeiro instante da sua existência.

66. A doutrina da creatio ex nihilo é, pois, uma singular afirmação do carácter verdadeiramente pessoal da criação e de sua ordem em direcção a uma criatura pessoal plasmada como imago Dei, e que responde não a uma causa impessoal, força ou energia, mas a um Criador Pessoal. As doutrinas da imago Dei e da creatio ex nihilo ensinam-nos que o universo existente é o palco de um evento radicalmente pessoal, em que o Criador Uno e Trino chama do nada aqueles que depois convoca no amor. É este o sentido profundo das palavras da Constituição conciliar Gaudium et Spes: “…o Homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma” (GS 24). Criados à imagem de Deus, os seres humanos assumem o papel de responsáveis pela administração do universo físico. Sob a direcção da Divina Providência, e reconhecendo o carácter sagrado da criação visível, a humanidade dá uma forma nova à ordem natural e passa deste modo a ser um agente na evolução do próprio universo. Ao exercerem a sua tarefa de administradores do conhecimento, cabe aos teólogos o dever de pôr os modernos conhecimentos científicos no interior de uma visão cristã do universo criado.

67. Com referência à creatio ex nihilo, os teólogos podem observar que a teoria do Big Bang não contradiz esta doutrina, sempre que se possa afirmar que a suposição de um início absoluto não é cientificamente inadmissível. Como a teoria do Big Bang não exclui de facto a possibilidade de um precedente estado da matéria, é de notar que ela parece dar um apoio simplesmente indirecto à doutrina da creatio ex nihilo que, como tal, só se pode conhecer através da fé.

68. Com referência à evolução de condições favoráveis ao aparecimento da vida, a tradição católica afirma que, enquanto causa transcendente universal, Deus é causa não apenas da existência mas também causa das causas. A acção de Deus não substitui a actividade das causas criaturais, mas faz com que estas possam agir segundo a própria natureza e, mesmo assim, alcançar os fins por Ele intencionados. No querer livremente criar e conservar o universo, Deus quer activar e sustentar todas aquelas causas secundárias cuja actividade contribui para o desenrolar da ordem natural que Ele pretende produzir. Mediante a actividade das causas naturais, Deus provoca o aparecimento das condições necessárias para a emergência e existência dos organismos vivos e, além disso, para a sua reprodução e diferenciação. Apesar de estar em curso um debate científico sobre o grau de propósito ou intencionalidade empiricamente observável nestes desenvolvimentos, eles favoreceram, de facto, o surgimento e desenvolvimento da vida. Os teólogos católicos podem ver neste tipo de raciocínio um apoio às afirmações derivadas da fé na divina criação e na Divina Providência. No projecto providencial da criação, o Deus Uno e Trino quis não só criar um lugar para os seres humanos no universo, mas também, e em última análise, reservar para estes um espaço na sua própria vida trinitária. Além disso, agindo como causas reais, embora secundárias, os seres humanos contribuem para transformar e dar uma forma nova ao universo.

69. O actual debate científico acerca dos mecanismos da evolução parece partir algumas vezes de uma concepção da natureza errada da causalidade divina e exige, portanto, um comentário teológico. Muitos cientistas, neodarwinistas, e alguns de seus críticos, concluíram que se a evolução é um processo de ordem material radicalmente contingente, guiado pela selecção natural e por variações genéticas aleatórias, então não poderá nela haver lugar para uma causalidade providencial divina. Um grupo crescente de cientistas críticos do neodarwinismo chama porém a atenção para as evidências de um desígnio [plano, projecto] – por exemplo, nas estruturas biológicas que mostram uma complexidade específica – que, segundo eles, não se pode explicar em termos de um processo puramente contingente, e que foi ignorado ou mal interpretado pelos neodarwinistas. O núcleo deste inflamado debate envolve a observação científica e generalização dos dados disponíveis relativamente ao suporte de inferências de desígnio ou acaso, tratando-se de uma controvérsia que não pode ser resolvida através da teologia. É no entanto importante notar que, segundo a concepção católica da causalidade divina, a verdadeira contingência na ordem criada não é incompatível com uma Providência Divina intencional. A causalidade divina e a causalidade criada diferem radicalmente na sua natureza, e não só no seu grau. Portanto, mesmo o resultado de um processo natural verdadeiramente contingente pode também inscrever-se no plano providencial de Deus a respeito da criação. De acordo com São Tomás de Aquino: “O efeito da Divina Providência não é apenas que uma coisa aconteça de um modo qualquer, mas que aconteça de maneira contingente ou necessária. Por isso, aquilo que a Divina Providência ordena que aconteça infalível e necessariamente, ocorre de modo infalível e necessário; aquilo que o plano da Divina Providência exige que aconteça de modo contingente, ocorre de modo contingente” (Summa Theologiae I,22, 4 ad 1). Na perspectiva católica, os neodarwinistas que invocam a variação genética aleatória e a selecção natural para sustentar a tese que a evolução é um processo completamente destituído de direcção, vão além daquilo que a ciência pode demonstrar. A causalidade divina pode estar activa num processo que é ou contingente, ou dirigido. Qualquer mecanismo evolutivo contingente só pode ser contingente por ter sido feito assim por Deus. Um processo evolutivo sem direcção algum
a – um processo, portanto, que não se insere nos limites da Divina Providência – simplesmente não pode existir, dado que “a causalidade de Deus, que é o agente primeiro, se estende a todos os seres, não só quanto aos princípios da espécie, mas também quanto aos princípios individuais […]. É necessário que todas as coisas estejam sujeitas à Divina Providência, na medida da sua participação no ser” (Summa Theologiae I,22,2).

70. No que diz respeito à criação imediata da alma humana, afirma a teologia católica que acções particulares de Deus produzem efeitos que transcendem a capacidade das causas criadas que agem segundo a sua natureza. O recurso à causalidade divina para preencher vazios autenticamente causais, e não para dar resposta ao que ainda é inexplicado, não significa utilizar a obra divina para preencher “buracos” do saber científico (dando assim lugar ao assim chamado “Deus-das-lacunas”). As estruturas do mundo podem ser vistas como abertas à acção divina não desintegradora enquanto são causa directa de certos acontecimentos no mundo. A teologia católica afirma que o aparecimento dos primeiros membros da espécie humana (indivíduos isolados ou populações) representa um evento que não se presta a uma explicação puramente natural e que se pode adequadamente atribuir à intervenção divina. Agindo indirectamente através de cadeias causais que operam desde o início da história do cosmos, Deus preparou o caminho para aquilo que o Papa João Paulo II chamaria de “um salto ontológico […], o momento de transição para o espiritual”. Se a ciência pode estudar essas cadeias causais, cabe à teologia colocar este relato da específica criação da alma humana no interior do grande plano de Deus Uno e Trino de compartilhar a comunhão da vida trinitária com pessoas humanas criadas do nada à imagem e semelhança de Deus e que, em seu nome e em conformidade com o seu plano, exercem criativamente o serviço e a soberania sobre o universo físico.