4. Pecado e salvação

44. Criados à imagem de Deus para partilhar a comunhão da vida trinitária, os seres humanos são pessoas constituídas de modo a poderem livremente abraçar esta comunhão. A liberdade é o dom divino que permite às pessoas humanas escolher a comunhão que o Deus Uno e Trino lhes oferece como bem supremo. Mas com a liberdade surge também a possibilidade de fracassar no uso da liberdade. Em vez de abraçar o bem último da participação na vida divina, as pessoas humanas podem afastar-se para gozarem dos bens transitórios ou até somente imaginários. O pecado é justamente este fracasso da liberdade, o voltar as costas ao divino convite à comunhão.

45. Na perspectiva da imago Dei, que na sua estrutura ontológica é essencialmente dialógica ou relacional, o pecado – como ruptura da relação com Deus – desfigura a imago Dei. É possível compreender, então, as dimensões do pecado à luz das dimensões da imago Dei que são atingidas pelo pecado. Esta alienação fundamental de Deus perturba além disso as relações do Homem com os outros (cf. 1 Jo 3,17) e, em sentido real, provoca uma divisão no seu íntimo entre o corpo e o espírito, o conhecimento e a vontade, a razão e as emoções (cf. Rm 7,14-15). O pecado afecta igualmente a existência física do Homem, provocando sofrimentos, enfermidades e morte. Além disso, assim como a imago Dei tem uma dimensão histórica, também tem o pecado. O testemunho da Sagrada Escritura (cf. Rm 5,12s) apresenta-nos uma visão da história do pecado, provocado pela recusa do convite à comunhão feito por Deus no início da história da humanidade. O pecado, enfim, também repercute sobre a dimensão social da imago Dei. É possível, assim, discernir ideologias e estruturas que são a manifestação objectiva do pecado e que se opõem à realização da imagen de Deus pelos seres humanos.

46. Os exegetas católicos e protestantes estão actualmente de acordo quanto ao facto de que a imago Dei não pode ser totalmente destruída pelo pecado, pois define toda a estrutura da natureza humana. Por seu lado, a tradição católica sempre insistiu que, enquanto a imago Dei pode ser desfigurada ou deformada, não pode porém ser destruída pelo pecado. A estrutura dialógica ou relacional da imagem de Deus não pode ser perdida mas, sob o império do pecado, acaba por ser comprometida a sua orientação para a realização cristológica. Mais ainda, a estrutura ontológica da imagem, ainda que ferida pelo pecado na sua faceta histórica, permanece não obstante a realidade das relações pecaminosas. A este propósito – como argumentaram muitos Padres da Igreja em resposta ao gnosticismo e ao maniqueísmo – a liberdade, que como tal define o que significa ser humano e é fundamental para a estrutura ontológica da imago Dei, não pode ser suprimida, mesmo que a situação na qual a liberdade se exerce seja em parte determinada pelas consequências do pecado. Enfim, em contraposição com o conceito de total corrupção da imago Dei por causa do pecado, a tradição católica insiste que a graça e a salvação seriam ilusórias se não conseguissem transformar a realidade existente, por mais pecaminosa que fosse, da natureza humana.

47. Compreendida nesta perspectiva da teologia da imago Dei, a salvação comporta a restauração da imagem de Deus por Cristo, imagem perfeita do Pai. Obtendo a nossa salvação através de sua Paixão, Morte e Ressurreição, Cristo conforma-nos a si mesmo através da nossa participação no mistério pascal e restaura assim a imago Dei orientando-a correctamente para a bem-aventurada comunhão da vida trinitária. Nesta perspectiva, a salvação não é outra coisa senão uma transformação e uma realização da vida pessoal do ser humano, criado à imagem de Deus e agora novamente orientado para uma participação real na vida das Pessoas divinas, através da graça da Encarnação e a permanência do Espírito Santo. A tradição católica fala aqui, com razão, de uma realização da pessoa. Sofrendo de uma carência de amor, por causa do pecado, a pessoa não pode alcançar a sua auto-realização separadamente do amor absoluto e benigno de Deus em Cristo Jesus. Com esta transformação salvífica da pessoa através de Cristo e do Espírito Santo, tudo no universo é igualmente transformado e chega a compartilhar a glória de Deus (cf. Rm 8,21).

48. Na tradição teológica, o Homem ferido pelo pecado está sempre carente de salvação, mas alimenta ao mesmo tempo um desejo natural de ver a Deus – é capax Dei – que, enquanto imagem do divino, constitui uma orientação dinâmica para o divino. Essa orientação, embora não destruída pelo pecado, também não pode ser realizada sem a graça salvífica de Deus. O Deus Salvador dirige-se a uma imagem de si, perturbada na sua orientação para Ele, e no entanto capaz de receber a divina actividade salvífica. Estas formulações tradicionais afirmam tanto a indestrutibilidade da orientação do Homem para Deus, como também a necessidade da sua salvação. A pessoa humana, criada à imagem de Deus, está ordenada pela natureza ao gozo do amor divino, mas apenas a graça divina possibilita e dinamiza a livre adesão a este amor. Nesta perspectiva, a graça não é simplesmente um remédio para o pecado, mas uma transformação qualitativa da liberdade humana possibilitada por Cristo, como uma liberdade libertada para o bem.

49. A realidade do pecado pessoal demonstra que a imagem de Deus não está aberta a Deus de modo inequívoco, mas pode fechar-se em si mesma. A salvação supõe que a pessoa seja libertada desta auto-glorificação mediante a cruz. O mistério pascal, originalmente constituído pela Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, faz com que toda pessoa possa participar da morte ao pecado que conduz à vida em Cristo. A cruz significa não a destruição do humano, mas a passagem que conduz a uma vida nova.

50. Os efeitos da salvação para a pessoa criada à imagem de Deus são obtidos através da graça de Cristo – novo Adão – que é a cabeça de uma nova humanidade e cria para o Homem uma nova condição salvífica através de sua morte pelos pecadores e através da sua Ressurreição (cf. 1 Cor 15,47-49; 2 Cor 5,2; Rm 5,6s). Deste modo, o Homem torna-se uma nova criatura (2 Cor 5,17), capaz de uma nova vida de liberdade, uma vida “liberta de” e “liberta para”.

51. O Homem é então liberto do pecado e da lei, do sofrimento e da morte. Acima de tudo, a salvação é uma libertação do pecado que reconcilia a criatura humana com Deus, até no meio de uma luta contínua contra o pecado, luta travada no poder do Espírito Santo (cf. Ef 6,10-20). E ainda, a salvação não é a libertação da lei como tal, mas de todas as formas de legalismo que se oponham ao Espírito Santo (2 Cor 3,6) e à realização do amor (Rm 13,10). A salvação conduz a uma libertação do sofrimento e da morte, que adquirem um novo sentido como participação salvífica na Paixão, Morte e Ressurreição do Filho de Deus. Além disso, segundo a fé cristã, “liberto de” significa “liberto para”: liberdade do pecado significa liberdade para Deus em Cristo e no Espírito Santo; liberdade da lei significa liberdade para o autêntico amor; liberdade da morte significa liberdade para uma vida nova em Deus. Esta “liberdade para” é possibilitada por Jesus Cristo, ícone perfeito do Pai, que restaura a imagem de Deus no Homem.