(2ª Parte)


Qual o significado dessa teoria? Responder a esta questão é entrar no campo da epistemologia [teoria do conhecimento, N.d.T.]. A teoria é uma elaboração metacientífica, distinta dos resultados provenientes da observação, mas consistente com esses. Por esse facto, uma série independente de dados e factos podem ser relacionados e interpretados numa explicação unificada. A validade de uma teoria depende se consegue, ou não, ser verificada; é constantemente testada perante os factos; quando já não conseguir mais explicar estes últimos, mostra as suas limitações e inadequação. Nesse caso, a teoria deve ser repensada.

Para além disso, enquanto que a formulação de uma teoria, como a da evolução, cumpre com a necessidade de consistência com os dados observados, usa certas noções da filosofia natural.

E, para ser mais correcto, em vez ser “a” teoria da evolução, deveríamos falar das “várias” teorias da evolução. Por um lado, esta pluralidade tem a ver com as diferentes explicações avançadas para os mecanismos de evolução, e por outro, com as várias filosofias nas quais se baseiam. Daí a existência de interpretações materialistas, reducionistas e espiritualistas. O que deve ser aqui decidido é qual o papel da filosofia e, para além deste, da teologia.

5. O Magistério da Igreja está directamente preocupado com a questão da evolução, pois envolve a concepção do homem: que a Revelação ensina que foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1: 27-29). A Constituição Conciliar Gaudium et Spes explicou magnificamente esta doutrina, que é essencial para o pensamento Cristão. Essa lembra que o homem é “a única criatura na terra que Deus quis por si mesmo” (n. 24). Noutros termos, o indivíduo humano não pode ser subordinado como um puro meio ou um puro instrumento, seja por uma espécie ou sociedade; ele tem valor per se. Ele é pessoa. Com o seu intelecto e vontade, ele é capaz de formar um relacionamento de comunhão, solidário e de auto-doação para com os seus pares. São Tomás observa que a semelhança do homem a Deus reside, em especial, no seu intelecto especulativo, pois, a relação com o objecto do seu conhecimento assemelha-se com a relação de Deus com aquilo que criou (Summa Theologica, I-II, q.3, a.5 ad 1). Mais ainda, o homem é chamado a entrar num relacionamento de conhecimento e amor com o próprio Deus, um relacionamento que encontrará o seu pleno cumprimento para além do tempo, na eternidade. Toda a profundidade e grandeza desta vocação é-nos revelada no mistério de Cristo ressuscitado (GS, 22). É por virtude da sua alma espiritual que a pessoa na sua totalidade possui tal dignidade, até no seu corpo. Pio XII focava este ponto essencial: se o corpo humano toma a sua existência a partir de matéria viva pré-existente, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus (Humanis generis, 36).

Consequentemente, as teorias da evolução que, de acordo com as filosofias que as inspiram, consideram a mente como emergente de forças na matéria viva, ou como um mero epifenómeno dessa matéria, são incompatíveis com a verdade sobre o homem. Nem tão pouco são capazes de fundamentar a dignidade da pessoa.

6. Com o homem encontramo-nos na presença de uma diferença ontológica, um salto ontológico, por assim dizer. No entanto, será que o posicionamento dessa descontinuidade ontológica é contra a continuidade física que parece ser a linha de investigação principal no campo da física e da química? A consideração do método usado nos vários ramos do conhecimento torna possível reconciliar dois pontos de vista que pareceriam irreconciliáveis. As ciências da observação descrevem e medem as múltiplas manifestações da vida com precisão crescente e correlacionam-nas com a linha do tempo. O momento de transição para o espiritual não pode ser objecto deste tipo de observação, que pode, contudo, descobrir ao nível experimental uma série de sinais valiosos indicando o que é específico no ser humano. Mas a experiência do conhecimento metafísico, da auto-consciência e experiência religiosa, cai na competência da análise e reflexão filosóficas, enquanto que a teologia vai ao encontro do seu sentido último, de acordo com os planos do Criador.

7. Concluindo, gostaria que vos lembrar uma verdade do Evangelho que dá uma luz maior sobre o horizonte da vossa investigação das origens e revelação da matéria viva. De facto, a Bíblia contém uma mensagem extraordinária de vida. Esta visão guiou-me na Encíclica que dediquei ao respeito pela vida humana, chamando-a, precisamente, de Evangelium vitae.

É significativo que no Evangelho de S. João a vida se refira à luz divina que Cristo nos comunica. Somos chamados a entrar na vida eterna, ou seja, na eternidade da beatitude divina.

Para nos alertar das sérias tentações que nos ameaçam, o nosso Senhor cita o grande ditado em Deuteronómio: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (8, 3; Mt 4, 4).

Mais ainda, a “vida” é um dos títulos mais belos que a Bíblia atribui a Deus. Ele é o Deus vivo.

Cordialmente invoco a abundância da bênção divina para vós e todos os que vos são próximos.


Vaticano, 22 de Outubro de 1996.