Recentemente foi publicado um artigo pelo teólogo Owen C. Thomas na revista da Taylor & Francis “Theology and Science” intitulado “The Atheist Surge: Faith in Science, Secularism and Atheism” onde o autor na introdução escreve uma frase que me chamou à atenção. Afirma Thomas que
«… o secularismo moderno, a ciência e o ateísmo têm a sua origem na tradição da religião bíblica [1].»
“Como!?” (pensei eu) Afirma ele que (p. 204)
«Um exemplo contemporâneo do zeitgeist [espírito da época] é o humanismo naturalista, que é, por defeito, a visão do mundo da academia secular Ocidental e, provavelmente, a visão do mundo de todos os autores ateus. Se assim for, esses devem dar-se conta que essa visão do mundo é o fruto da religião bíblica, uma vez que tanto o naturalismo como o humanismo têm aí a sua origem – naturalismo na ideia bíblica da criação, incarnação e ressurreição do corpo, e humanismo na ideia bíblica da criação dos seres humanos à imagem de Deus. Isto ocorreu através dos escritos do filósofo do séc. XIX Ludwig Feuerbach que introduziu o humanismo naturalista no período moderno. (…) Ele tinha uma educação Cristã e estudos graduados em teologia Cristã. Karl Barth, o teólogo mais influente do último século, afirmou que Feuerbach compreendia a teologia Cristã melhor que qualquer outro filósofo ou teólogo do seu século, e que o seu pensamento correspondia a um “realismo Cristão” no seu anti-espiritualismo, atenção à pessoa no seu todo no que diz respeito ao seu carácter terra-a-terra, mundano e afirmação da natureza interpessoal e comunitária da humanidade.»
Para entender melhor o que o autor quer dizer, precisei de ler o artigo na referência [1] que foi publicado na Anglican Theological Review e que faz uma análise das origens da modernidade. Thomas afirma existirem duas visões sobre estas origens. A visão da Academia Secular Ocidental que afirma a modernidade como o «cumprimento de renascimento da cultura clássica no Renascentismo completados e refinados no Iluminismo» e uma visão alternativa, a partir de Paul Tillich, onde a origem da modernidade é informada por aquilo que se pode chamar de Cristianismo bíblico. De acordo com esta última visão, a tradição bíblica é contaminada pela sua amálgama (confusão, embrulhada) com a tradição Platonista, emerge depois dessa amálgama no período Renascentista, porém, perdendo-se de novo parcialmente no Iluminismo.
Qual a contaminação Platonista na tradição bíblica? Enquanto numa doutrina da Criação, Deus cria um mundo e considera tudo o que nele existe como bom, incluindo o mundo físico, o corpo, a sexualidade, a individualidade, a comunidade humana e a história, com o Platonismo, o Cristianismo é re-interpretado como um caminho de salvação do espírito humano na redescoberta da sua verdadeira natureza divina, através de disciplinas ascéticas de supressão do corpo e da psique, de modo a escapar aos níveis mais mais baixos da realidade e reunir-se com o Nível Divino mais elevado (p. 242 de [1]). Afastando-se da religião bíblica, o corpo e individualidade humanas tornam-se ambíguas, senão mesmo irreais ou realidades más, assim como a comunidade humana e a história tendem a tornar-se insignificantes. Isto está bem patente na expressão de Nietzsche «o Cristianismo é um Platonismo para “o povo”», logo, é presumível que a crítica ateísta desse tempo se dirigia a uma interpretação Cristã amalgamada com o Platonismo e que se afastava da interpretação original pela tradição bíblica. Thomas recorda outro exemplo da contaminação Platonista recorrendo a Paul Ricoeur quando afirmar que «ao Platonizar o Cristianismo adopta-se pela oposição entre contemplação e concupiscência, que por sua vez, introduz uma oposição entre a alma espiritual e o corpo mortal e furioso» (in [1], p.242).
No que diz respeito ao Renascimento, ao contrário da interpretação da Academia que atribui a revolução implícita à redescoberta da literatura Grega Antiga, não há nada nessa contida que possa transformar a cultura e a sociedade. Pelo contrário, segundo Thomas, «o Renascimento consiste no evidenciar de um humanismo Cristão baseado nas doutrinas da criação, incarnação e da ressurreição do corpo, e, especialmente, na doutrina da criação da humanidade à imagem de Deus» ([1], p.244) de onde emerge o humanismo actual. Nas palavras de Stanley Romaine Hopper: «o génio do período do Renascimento reside na recuperação que faz do Cristianismo bíblico. Isto é, o apelo à dignidade humana, aos direitos do indivíduo, à liberdade, à responsabilidade criativa do homem na história, à fraternidade e ao mundo como uma realidade tangível no tempo e no espaço» (in [1], pp.244-245). Neste sentido, os ideais iluministas da fé na razão, ciência e tecnologia, de alguma forma possuem as suas raízes no Cristianismo bíblico redescoberto no Renascimento, ao mesmo que tempo que se insurgem contra essas raízes, dando origem a muitas ideias chave do mundo moderno, como o ateísmo, secularismo, mas cujas raízes são Cristãs.
Chegámos, então, ao ateísmo … Na história do mundo Ocidental, não deixa de ser curioso que o primeiro grupo oficialmente chamado de “ateus” foram os Cristãos, pois não acreditavam nos deuses Romanos. Assim, como afirma Thomas, «este ateísmo estava fundamentado na crítica profética à idolatria» (p. 246). É também aqui que emerge o secularismo, pois através da doutrina da Criação, o mundo e Deus são distintos, ao passo que anteriormente, o mundo e os seres divinos estavam ao mesmo nível e incutiam no espírito humano o medo do mundo porque incapaz de o distinguir dos seres divinos. De certa forma, é a doutrina da Criação que abriu a mente humana à possibilidade da ciência positiva e da tecnologia, baluartes actuais do ateísmo. Contudo, é gradualmente consensual entre os historiadores de ciência que o Cristianismo foi o maior contribuidor para a ascensão da ciência moderna, através de uma atitude bíblica em relação à natureza reconhecendo a sua inteligibilidade, e da ideia de criação implicando isso que os detalhes da natureza podem ser conhecidos, estudando-os através da observação e não por qualquer dedução da sua natureza divina, tal como era sustentado no pensamento Grego.
É por estes motivos que Owen Thomas conclui também que «a cultura moderna é um fenómeno Cristão que acredita ser anti-Cristão. É uma tentativa de viver uma vida Cristã sem afirmar a fé Cristã» (p. 249).
O que concluo desta leitura de Owen Thomas sobre as raízes Cristãs do ateísmo? O naturalismo pode ser metodológico (naturalismo científico) ou metafísico (naturalismo ontológico). O primeiro afirma que o mundo natural investigado pelas ciências naturais é tudo o que existe, a única realidade, e que as ciências naturais são a única forma de adquirir conhecimento sobre o mundo real. O segundo afirma simplesmente que o mundo natural é tudo o que existe e que todas as verdades básicas são verdades do mundo natura
l. Nada disto seria possível sem que Deus fosse claramente distinto do mundo, em si mesmo um resultado da doutrina da Criação. Por outro lado, o facto de Deus ter incarnado e ressuscitado em corpo implica também uma intimidade relacional com mundo, de tal forma que sendo distinto do mundo, não é distante do mundo, mas está nele presente e com ele interage.
É claro que acreditar no Deus da tradição bíblica Cristã coloca problemas ao crente, pois, sendo distinto do mundo, a sua visão do mundo assenta em algo que transcende esse mundo, o que dá origem à possibilidade de conceber Deus de muitas formas. Porém, coloca também problemas ao ateísmo, pois, ao negar Deus, nega simplesmente um teísmo entre os vários que emergem pelo facto de não se poder chegar a Deus directamente. Assim, a negação do ateísmo consiste na negação de “um” teísmo, que alguns teólogos identificam ser, frequentemente, um “teísmo sobrenatural” (ver http://www.youtube.com/watch?v=b80UXZi7F74 [2]), caracterizado por um Deus intervencionista ao modo dos deuses contra os quais insurgiu a mentalidade Cristã.
Em suma, a génese do ateísmo, segundo Thomas, está na crítica a uma amálgama entre Cristianismo e Platonismo, porém, inspirada por uma tradição bíblica anti-espiritualista, valorizando o ser humano de acordo com valores tipicamente Cristãos, o que parece ser um contra-senso. Não deixo de pensar que um ateu ao ler estas linhas se sinta pouco identificado com o facto de possuir raízes na tradição bíblica Cristã, mas esse facto também não me parece ser condição suficiente para as considerar uma imposição histórica que desvalorize a sua negação de Deus. Pode, sim, constituir uma oportunidade para questionar o teísmo que nega, e aprofundando as questões do ponto de vista teológico, “inquietar” os crentes contribuindo, na reciprocidade, para o maior aprofundamento das razões da sua fé, tal como fez e faz ainda Feuerbach. Mais importante do que aquilo que nos divide é aquilo que nos une. Antes pensava que apenas nos unia “a dúvida”, hoje percebo melhor que temos também raízes comuns na tradição bíblica Cristã.
No entanto, permanece a questão, como podem visões do mundo tão diferentes possuir as mesmas raízes? Acho que percebê-lo, leva tempo …
[1] Owen C. Thomas (2009) The Origins of Modernity: an alternate interpretation of Western cultural history, Anglican Theological Review, 91(2): 235-254.
[2] Agradeço ao Pedro Amaral Couto a referência.
Miguel, Owen C. Thomas também tinha escrito uma crítica ao panenteísmo em “The Oxford handbook of religion and science”.
Não sei se a maioria dos ateus é humanista. Eu não sou e encontro vários artigos de ateus que o criticam. Vários ateus parecem ter valores semelhantes aos das religiões indianas, onde se protege muito os animais. Acho que é essa a tendência, mas preciso de fazer perguntas a vários ateus para ter mais segurança sobre isso.
Gostaria de comentar vários pontos do teu artigo, mas só vou tendo tempo para pensar neles à noite depois do trabalho e é melhor fazê-lo num fim-de-semana depois de um passeio. Mas deixo três observações:
1) Existiam escolas atéias materialistas na Índia desde o século VI a.C., como a Cārvāka e a Samkhya. No século seguinte, Aristipo de Cirene fundou a escola cirenaica, que seguia o ateísmo. Grupos organizados de ateus existiam muito antes do cristianismo.
2) É estranho os cristãos serem o primeiro grupo no ocidente oficialmente chamados de “ateus” por não acreditarem nos deuses romanos, mesmo no ocidente. Existiam grupos de judeus que viviam em Roma e que até procuravam converter romanos. E os atomistas eram chamados de ateus e foi preciso um padre francês para que o atomismo deixasse de ter conotações com o ateísmo.
3) As primeiras ideias de naturalismo filosófico surgiram entre os jónios pré-socráticos, que eram chamados de filósofos naturalistas. Por exemplo, entre eles Protágoras, que era um ateu materialista que dizia que o Homem era a medida de todas as coisas. Segundo os humanistas, apesar do nome “Humanismo” ser recente, ele talvez terá sido o primeiro humanista. O Humanismo Cristão começa com a reinterpretação das filosofias gregas (até o Epicurismo) para harmonizá-las com o cristianismo. Mas acho que o Humanismo Secular tem raízes nos críticos cristãos da Igreja Catóca, na teofilantropia deísta e nas religiões organizadas atéias que surgiram a partir da Revolução Francesa.
Até à próxima.
Caro Pedro,
Obrigado pelas tuas observações.
1) A questão que coloco é se era apelidados pelos restantes como tal. Podias dar-me uma referência disso? Por outro lado, o teísmo negado era o mesmo que o dos Cristãos.
2) A descrição vem da Apologia de Justino (6), teólogo do séc.II. Qual a tua referência?
3) Porém, o que Thomas argumenta é que essa crítica se dirigia a uma amálgama entre Cristianismo e Platonismo, ou seja, a uma interpretação que se afastava da tradição bíblica.
Aguardo mais das tuas atentas reflexões.
1)
– As sutras “Lokāyata” (ie: “sem deuses”) perderam-se no século II a.C. e só existem fragmentos conservados por críticos hindus e budistas;
– Análise de diferentes sistemas da filosofia Hindu, Madhavãchãrya, cap. I;
– Samkhyapravachana Sutra
– Sobre a natureza dos deuses, de Cícero;
– Ísis e Osíris, de Plutarco, ¶57
– Diogenes Laertius, ii ; referência a Sobre os Deuses, de Teodoro, o Ateu (A History of cynicism, Donald. R. Dudley, op. cit., pp. 105,106);
~
– Atheism in Pagan Antiquity, A.D.Drachman, p.75
– Zeus is dead: Euhemerus and Crete, S. Spyridakis
– Moral Exhortation, A Greco-Roman Sourcebook, Abraham J. Malherbe : «Epicureans were accused of atheism, hedonism and hatred of humanity»
É certo que a escola cirenaica professava o ateísmo prático e anti-religião, e tinha membros que explicitamente negavam a existência de deuses, mas não encontro fontes anteriores ao cristianismo que indiquem explicitamente o ateísmo filosófico como doutrina cirenaica. Apenas inferem a partir o hedonismo sensualista e materialista, mas não seria contrário à existência deuses distantes e materiais.
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2)
Em “Antiguidades Judaicas”, de Flávio Josefo, é dito que Filo de Alexandria e uma comunidade de judeus recusaram-se a prestar homenagem a César e aos deuses (xviii, par. 1).
“Jewish women in historical perspective”, Judth Baskin » Jewish Women in the Diaspora World of Late Antiquity
Portanto, é estranho que os judeus que viviam em Roma não tenham sido acusados de “ateísmo” pelas razões que indicaste em relação aos cristãos, mas na “Jewish Encyclopedia” encontrei uma entrada sobre ateísmo.
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3)
Parece que tinhas dito que o humanismo, naturalismo e secularismo no ateísmo têm origem no cristianismo. Confirmas?
Caro Pedro,
1) a questão que se coloca refere ao conceito de deuses que nega. Serão seres entre outros seres? Serão parte ou distintos do mundo? A origem do ateísmo moderno relaciona-se mais com o Deus dos Cristãos, sobretudo pela origem ocidental que esse possui.
2) é estranho que os judeus que viviam em Roma não tenham sido acusados de “ateísmo” pelas razões que indicaste em relação aos cristãos
Talvez pelo facto de Jesus ser humano e judeu …
3) Confirmo
Abraço