A Ecclesia publicou recentemente um texto meu intitulado “Onde está Deus?”. O conteúdo refere-se ao problema complexo do mal a partir da dura experiência das chuvas da Madeira e outras catástrofes naturais (Haiti e Chile) ocorridas faz por aqueles dias. Fui no Facebook estimulantemente interpelado pelo meu caro amigo Domingos Faria que relacionou (e bem) o problema do mal com a omnipotência de Deus. Partilho alguns pensamentos a partir de um diálogo que tive por email com um grande amigo meu sobre o assunto.
«Para mim, Deus é alguém com o qual só faz sentido estabelecer uma relação concreta e não platónica. Se se afirma que Deus é Amor, esse amor não é platónico ou idealista, mas concreto. Concreto significa também do ponto de vista material, caso contrário, vive-se um amor abstracto relativamente ao qual pode ser muito difícil dar crédito.
Falei-te em tempos que a omnipotência de Deus está na potência ilimitada do Amor. Amor esse que é eros, phileo, ágape. No caso da omnipotência como amor, eu creio que a sua expressão está, precisamente no ágape. O que é ágape? O que a mãe (mais do que rainha) das ciências (ou seja, a teologia) nos ensina é que ágape é o Dom-incondicional-de-si-mesmo. Se Deus ama, Deus não dá, dá-Se! Tudo pode, aqui, quer dizer concretamente, tudo ama, isto é, dá-Se totalmente.
Onde está esse Deus omnipotente quando um inocente morre numa catástrofe natural? Deus está com esse inocente. Sofre com ele. Experimenta a morte e a finitude com ele. Um inocente que morre não está só.
O que é então “salvar a todos”? Salvar o quê, se morrendo, do ponto de vista material, nada resta para salvar? Eu penso que na sua omnipotência como amor, Deus salva os relacionamentos, porque é essa a verdade contida na expressão “pecado original”, isto é, uma constatação de vivermos imersos num mundo danificado relacionalmente. Um inocente que morre desafia a unidade entre nós (seres conscientes da morte) e o mundo natural, ou seja, desafia a nossa visão do mundo com uma imagem de desunidade. Não aceitar a morte de um inocente numa catástrofe natural, do ponto de vista de um Deus que se diz amor, que Se dá, mas que de nada me serve porque “isso” não me salva, é não aceitar que sou finito. Mas porque razão não aceito que sou finito? O que subjaz ao inconformismo perante a finitude? Se tenho uma mente cientificamente informada, sei que a própria segunda lei da termodinâmica me permite explicar a existência de irreversibilidades nos processos energéticos, e por isso, que a finitude é inevitável. Se vou contra a existência de Deus porque não consigo conformar-me que alguém tenha criado o mundo assim, onde a experiência de felicidade, de amor, de bem que faço tem um prazo, de onde vem este desejo de que esse prazo não exista? Não quer tudo isto dizer que sentimos no âmago dessa derradeira questão o desígnio para o infinito? De onde vem esse sentimento?
A omnipotência de Deus como omnipotência de amor parece-me um grande desafio à opção por uma visão materialista da realidade. Se Deus não estivesse “com”, eu nunca teria sequer estas questões, ou desejos, ou inconformidades perante a finitude. As coisas seriam como são e bastava.»
Ao olhar para a imagem acima (que cortei para não ferir susceptibilidades), e pensando no que tinha escrito, a sensação foi estar perante um ícone vivo de Cristo Crucificado e Abandonado. Ele que num momento auge de dor sente também o silêncio de Deus – diria – de reverência perante o grito por amor vivido pelo Seu filho: «Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?». Silêncio e vazio que todos sentimos perante a nossa finitude expressa na dor, sofrimento e morte que a contingência inerente ao mundo encerra. Não deixa, contudo, de ser curioso que não há Cruz sem Ressurreição. Por isso, não é de admirar a onda de solidariedade que os diversos ícones vivos do Abandonado geraram. Por fim, se há pensamento que o diálogo entre fé e razão nos tem interpelado é o que John Haught chama de Princípio Cosmológico Narrativo. O universo é história e a existência de Deus nos revela que essa não acabou … logo, prevalece a esperança que nos atrai do futuro.
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