Estamos usualmente habituados a serem os cientistas que colocam questões difíceis à teologia. O que é bom para a teologia, uma vez que o avanço que qualquer ciência natural ou humana depende de questões difíceis. Por outro lado, estamos também habituados a que a ciência não beneficie de qualquer interpelação feita pela teologia, o que pode levar a uma visão da ciência um pouco fechada sobre si mesma.
Colocar questões é saudável. Sem questões, o conhecimento não avança. O problema pode estar no tipo de questões que se faz.
Pensemos, por exemplo, no problema teológico da inércia.
A ideia da Causa Primeira no pensamento de Ockham consiste em reconhecer a incapacidade da existência contínua das coisas ser auto-explicativa. Assim, isto exige a existência e atividade de uma Causa Primeira que lhes deu origem. Deus. Caso contrário, sem Deus (Causa Primeira), a realidade finita não poderia persistir. Aqui vem a ideia de um Deus cuja acção no mundo é permanente, caso contrário, em jeito “cartonizado”, se Deus se distraísse, o mundo poderia colapsar.
Ora, a ideia da auto-preservação associada ao princípio da inércia substitui a dependência da realidade física da atividade de Deus que criava continuamente. O princípio da inércia descreve a potencialidade inata da realidade física em persistir no tempo, em estado de repouso, ou em movimento, a não ser que seja perturbada por uma força.
“Bom, se assim é … Deus pode “distrair-se” à vontade que o mundo não colapso por causa disso. Oops! Mas, então, isso pode querer dizer que o mundo não precisa da acção de Deus para persistir, certo?”
“Hum … “
“Mas isso pode querer dizer mais. Isto é, se encontrei uma explicação científica para o desenrolar de acontecimentos no mundo pela forma como os corpos interagem entre si, num jogo de forças que vai perturbando aqui e acolá a inércia, desacomodando os corpos, criando eventos e mostrando a existência de uma história, então, preciso da cooperação de Deus para quê?
“Espera … há a questão da Causa Primeira …”
“Não estou tão certo assim. É que se encontrei causas segundas naturais, posso admitir a possibilidade de encontrar uma ‘Causa Primeira’ natural, logo, é razoável pensar que o mundo não precisa, de facto, da cooperação de Deus para nada. Deus? Será que o mundo precisou alguma vez de alguém para o que quer que seja? É que a ciência tem-nos ajudado a perceber, começando pelas consequências do Princípio da Inércia, que é possível encontrar explicações plausíveis que não necessitam da acção de Deus como explicação, como no passado. Logo, a conclusão acaba por ser: se a cooperação de Deus é supérflua, talvez também a sua existência seja supérflua …”
Em suma: o princípio da inércia questionou a forma como Deus age no mundo e isso levou a questionar a existência de Deus. Mas, será que a interpretação do princípio da inércia como explicação para a auto-preservação do mundo estará correta?
Mais do que um universo feitos de corpos sólidos, subjacente ao princípio de inércia está um universo feito de eventos que fazem história. Porém, esses eventos são profundamente afetados pela contingência, ou seja, algo que poderia não acontecer, mas acontecendo produz efeitos irreversíveis. De facto, o mundo não se auto-preserva, mas evolui, é uma narrativa. O que é, então, a acção de Deus num mundo assim?
Há quem aponte para uma acção não-intervencionista, ou seja, Deus não viola as leis da Natureza para poder agir. Seria estranho que um Criador violasse o que criou para agir. Acontece é o nível de compreensão da realidade por onde age está para além da realidade física, entrando na metafísica. E a grande preocupação das pessoas está em saber como Deus age. Mas o problema é este, se soubéssemos como Deus age sem que Deus nos tivesse dado a conhecer, seríamos uma realidade maior que o próprio Deus. Seríamos Deus, pois – por definição – não há qualquer realidade maior do que aquela que designamos por … Deus. Assim, a acção de Deus acontece através da própria criação que evolui ainda. E como qualquer passo evolutivo implica relacionamentos, Deus age através dos relacionamentos. E tudo isto é possível por um envolvimento de Deus tal com as criaturas que está mais próximo delas do que elas estão em relação a si próprias.
A questão é: o que quer isso dizer na prática … Bom, é por essa razão que aprofundo o meu relacionamento com Deus através de uma experiência comunitária, e respetivos relacionamentos. Outros aprofundam esse relacionamento através da oferta da sua vida pelos outros em missões nas periferias existenciais. Outros através do estudo. Outros através da oração permanente. Não há limites à criatividade de quem procura um genuíno relacionamento com Deus. Aqueles que optam por recusar Deus, naturalmente, tendem a ter uma menor sensibilidade à Sua acção por via da sua opção de natureza filosófica. E, consequentemente, menor sensibilidade à Sua existência. Porém, a existência de Deus não é comprometida pela opções filosóficas de alguém, como a existência de alguém não depende das minhas opções filosóficas. Uma coisa é certa. Não fiquemos à espera que Deus viole a nossa escolha …