Este excerto escrito pelo conhecido teólogo Karl Rahner tem mais de 30 anos, porém, exprime com uma actualidade impressionante aquilo que assistimos hoje pela blogosfera. Diz ele :
«Com todo o respeito pela ciência moderna: a teologia bimilenar do Cristianismo também não esteve a dormir. O intelectual de hoje não deve imaginar que, em geral, esteja a levantar problemas e sentir dificuldades em relação às proposições de fé, que antes dele nenhum teólogo tivesse conhecido. E naturalmente deve saber que, mesmo quando obteve um esclarecimento de boa fonte, o mistério de Deus permanece. Isso faz parte da essência da teologia. Ela não é a explicação de um mistério pelo acesso à evidência, mas um olhar no claro-escuro dos mistérios divinos. Uma clareza absoluta não seria senão o sinal de que se passou ao largo da verdade divina e que se preferiu o erro facilmente compreensível de um racionalismo humano»
(Rahner, Teologia e Ciência, Edições Paulinas, 1971, p. 28).
Com todo o respeito que tenho pelo blogateísmo, penso que a falta de comunicação, de diálogo, de comunhão de ideias advém da superficialidade com que se lê posts e comentários. Deus continua a ser uma causa entre outras causas no pensamento blogateísta e este ainda julga que essa questão panteísta, ou demiurga, é nova. É verdade que não se espera encontrar reflexões demasiado profundas na blogosfera, mas reconheço o seu valor para partilhar pensamentos e trocar comentários que permitam conhecer melhor aquele que pensa de maneira diferente de mim, e com o seu pensamento, pensar melhor o que penso.
Num comentário procurei argumentar como o blogateísmo, ramo do “novo ateísmo”, apesar da superficialidade dos argumentos que desenvolve, pode constituir uma evidência da sua possibilidade num mundo com Deus, do que num mundo sem Ele. Perante o que Rahner diz acima, o ateísmo não deveria ser considerado evidência, mas como parte do “claro-escuro dos mistérios divinos”. No mundo com Deus, Deus não é o mundo, ou faz parte do mundo, mas é sim distinto do mundo. Num mundo onde a evolução ocorre num espaço de possibilidades, implica necessariamente pensar no conceito de Liberdade. Assim, quem crê que Deus criou o mundo por amor, vê nessa liberdade aquilo que esperaria experimentar se, de facto, Deus tivesse criado um mundo por amor. Logo, se o mundo é livre, não faz sentido não haver a possibilidade de – na liberdade – rejeitar o próprio Deus. Daí que – para mim – o ateísmo seja este “claro-escuro” concreto daquilo que se esperaria ocorrer num mundo que tivesse sido criado por Deus, por amor. Diz Rahner que
«A metafísica Cristã sempre teve consciência [da] transcendência de Deus e a formulou explicitamente. Sempre afirmou que Deus não é um elemento do mundo experimentável, calculável e não constitui sequer a sua suprema chave de cúpula. Sempre soube que Deus não entra numa concepção do mundo a título de última hipótese de uma solução. Deus é, pelo contrário, a priori, a condição prévia do mundo e do seu conhecimento, condição que não cai sob a lei do mundo, mas antes, este último supõe-na. Por causa da natureza da sua inteligência, o homem não pode lançar directamente o olhar sobre esta condição prévia, nem dela fazer o seu objecto imediato. Só a conhece de maneira indirecta, como o ser infinito, postulado pelo finito, como o ser incondicionado, postulado pela experiência da multiplicidade e seu carácter relativo, sem que por isso esteja ao alcance do homem»
(p. 16).
Qual, então, a atitude que espero de um ateu que leve a questão de Deus a sério?
Inquietude.
Rahner neste texto com 30 anos ajudou-me a perceber questões levantadas por um ateísmo inquieto, que raramente vi expressas no pensamento blogateísta. Diz ele que
«O espanto diante da ausência de Deus no mundo, o sentimento de não poder mais perceber o divino, a estupefacção diante do silêncio de Deus, diante da atitude de Deus que se fecha sobre a própria inacessibilidade, diante da rigidez sem olhos e sem fisionomia das leis do mundo, não só no terreno da natureza, mas também naquilo que diz respeito aos homens … esta experiência que pensa dever dar teoricamente de si mesma uma interpretação ateísta, é na verdade uma experiência autêntica do que há de mais profundo na existência»
(p. 18).
Por mais que se compare Deus a sereias, unicórnios, duendes, pai natal, etc., qualquer comparação só diminui a credibilidade de quem a faz porque fica sempre aquém da verdade. Sendo Deus, Deus, “o mistério permanece” (Rahner) e isso implica que Ele está para além da nossa imaginação e, nesse sentido, não se compara a ela. Mas será que colocar Deus no mesmo saco que produtos da nossa imaginação é sequer um argumento importante? Qual o contributo que esse tipo de comparações dá para o “que há de mais profundo na existência”?
Será que o blogateísmo possui, de facto, uma função de “sobressaltar” os crentes, ou poderia ser mais do isso e “inquietar” os crentes? Inquietar significa aqui que tanto obriga os crentes a aprofundar a sua fé, como os não-crentes a aprofundar a ausência de fé. Enfim, fica lançado um desafio que espero que seja inquietante …
Caro Miguel,
partilho sem hesitação do que escreveu e das passagens que citou. Parecem-me claras e sábias.
Não vejo é como um ateu genuinamente inquieto e interrogado acerca de Deus continuaria a dizer-se ateu.
Bastar-lhe-ia partilhar das inquietações e das preocupações e das angústias dos crentes, para adoptar outra atitude e outros comportamentos.
Mas, ao contrário do crente, o ateu não tem inquietações, nem angústias. É a isso que chamam método científico? Pão-pão, queijo-queijo? É nessas certezas que a ciência finca os pés e encontra a paz?
Um laivo de amor à verdade levaria a pensar que, se Deus existe (e a hipótese de existir é infinitamente mais apoiada do que a hipótese contrária) então Deus é tudo o que importa. Ou seja, é de tal forma importante responder a esse desafio, que todos os outros, lhe cedem prioridade ou lhe são instrumentais.
Mas vou desenvolver um pouco esta temática que me parece suficientemente relevante para merecer destaque no meu blogue.
Um abraço
Caro Carlos,
obrigado pelo pertinente comentário. De facto, se a ciência fincar os seus pés e encontrar a paz em falsos absolutos, morre simplesmente. Atrás de uma nova descoberta existem sempre novas questões. Contudo é isso que esperaria de um universo criado por Deus, isto é, cheio de surpresas…
abraço
Um ateu terá inquietações e angústias existenciais como qualquer outro ser humano pensante e consciente. Não as terá sobre o vosso Deus cristão, naturalmente. Desde logo porque é só mais um deus entre muitos; depois porque não reconhece autoridade a dois mil anos de especulação conventual e de olhares “no claro-escuro dos mistérios divinos”, que é uma forma elegante de reconhecer que no essencial também nada sabem. Isto é, não são explicações satisfatórias para o mistério da existência (pelo menos para as questões a que ciência ainda não deu resposta), daí que se continue a debater a matéria como se fosse nova. Mas a fé é um fenómeno fascinante, lá isso é.
Caro J,
antes de mais obrigado pelo comentário 🙂
Afirmas que um ateu possui inquetações, mas
Não as terá sobre o vosso Deus cristão, naturalmente. Desde logo porque é só mais um deus entre muitos
Não percebi se te estás a referir aos muitos deuses como na Grécia antiga, ou ao facto de haver muitos conceitos de Deus. Podias esclarecer-me?
depois porque não reconhece autoridade a dois mil anos de especulação conventual e de olhares “no claro-escuro dos mistérios divinos”, que é uma forma elegante de reconhecer que no essencial também nada sabem.
É uma questão teológica extremamente importante, daí a importância da revelação, ou das implicações de determinados conceitos de Deus ou formas indirectas de conhecer Deus, entrando em relação com Ele. De outra forma, nada se sabe sobre Deus por definição, caso contrário, o que soubessemos por nós próprios sobre Ele não se referiria a Ele.
Abraço
E eu agradeço a cordialidade.
Não me referia ao politeismo, stritu sensu, mas também. Isto é, referia-me à existência, no presente e no passado, de inúmeras propostas religiosas. Com deuses; ou sem eles, como é o caso do budismo. Já agora, o politeismo não se confina à Grécia antiga, está bem vivo nas suas diversas expressões (incluindo a expressão olímpica da Grécia Antiga) e os poli-crentes recomendam.
Acredito que seja uma questão importante da teologia católica. Para mim, confesso, não tem importância nenhuma. Para um não-crente, como eu, esse discurso é esotérico, é redundante e não explica rigorosamente nada. Aquino quando se põe a perorar sobre o divino, para mim, é um monumento à redundância. E, antes que pergunte, sim, li. O meu amigo acredita que os pensadores da sua igreja (que durante séculos pouco mais fizeram senão pensar, o que resulta obviamente em resmas e resmas de pensamento rebuscado acumulado) obtiveram as suas ideias por via de um processo qualquer de inspiração, perdão, revelação espiritual. Eu acho simplesmente que a imaginação humana é um poço sem fundo, que as emoções movem montanhas e que a credulidade é um fenómeno poderoso. Por exemplo, acredita que o Deus cristão se revelou a Joseph Smith nos termos expostos no Livro de Mórmon? Porquê?
Caro J,
Para um não-crente, como eu, esse discurso é esotérico, é redundante e não explica rigorosamente nada.
Não dependerá isso do objecto formal ao qual se dirige a explicação?
Eu acho simplesmente que a imaginação humana é um poço sem fundo, que as emoções movem montanhas e que a credulidade é um fenómeno poderoso. Por exemplo, acredita que o Deus cristão se revelou a Joseph Smith nos termos expostos no Livro de Mórmon? Porquê?
A imaginação humana é fértil e ainda bem 🙂
Creio que relativamente a Deus podemos imaginar muita coisa, mas nem tudo se refere a Deus, daí a importância do pensamento tendo em conta que em Jesus, Deus revelou-se totalmente. Assumindo esta premissa, desconfio de Joseph Smith. O pensamento Católico é que nada revelamos que não tenha sido revelado por Jesus. Tudo o resto são interpretações na tentativa permanente de compreender a profundidade daquilo que nos foi revelado.
O pensamento teológico possui um património riquíssimo (não o considero, obviamente, redundante) através do qual tenho aprofundado a minha e dado coerência à minha experiência de vida.
Essa é, certamente, diferente da experiência de um não-crente, mas se pensar em Ludwig Feuerbach, a sua compreensão da teologia Cristã, que era, segundo Karl Barth, melhor que a de muitos teólogos, não o impediu de “inquietar” …. :), logo, também para ele não era redundante.
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«Não dependerá isso do objecto formal ao qual se dirige a explicação?»
Não. Ou sim se considerarmos a ideia de Deus enquanto esse “objecto formal”. Quando digo que o discurso teológico é redundante é no sentido em que não acrescenta nada ao nosso conhecimento do mundo e da vida. É um património abundante (compreenda que não o entenda como rico) de pensamento especulativo, não sobre realidades e experiências humanas, como acontece com a filosofia, mas sobretudo sobre putativas realidades transcendentes e a nossa relação com elas. Naturalmente que há essa dimensão moral na narrativa religiosa, que a teologia também se debruça sobre o comportamento e a condição humana, mas fá-lo sempre em referência à nossa relação com o divino e segundo premissas mitológicas e tradições indemonstráveis. Um exemplo de premissa mitológica e tradição indemonstrável pode ser Jesus Cristo. O meu amigo baseia a sua crença no mito de Jesus, e de que este, como se pode ler nos quatro Evangelhos canónicos, seria Deus “totalmente” revelado e que depois dele qualquer outra revelação além da definida pelo catolicismo romano é de desconfiar. Eu, se calhar porque venho da História e não da Engenharia, vou apenas um passo mais longe do que você: a sua versão de Deus é um pouco mais antiga do que a dos Mórmons (mas relativamente recente se tivermos em conta o judaismo ou a generalidade das religiões orientais, das animistas ou panteistas europeias) mas para mim também é de desconfiar. (cont.)
Por um lado porque não penso que a antiguidade seja automaticamente um posto; por outro porque tenho muitas dúvidas em relação à própria existência histórica do seu Cristo. Que é outra conversa muito interessante que não me canso de ter com católicos. Mas mesmo admitindo que tenha existido tal personagem lendário, também se me afigura um passo arriscadíssimo da razão, dar de barato que tenha sido Deus revelado, ou acreditar que curou leprosos, que nasceu de uma virgem, que andou sobre a água ou que ressuscitou. Acho inclusivamente espantoso que pessoas inteligentes e cultas consigam acreditar em tais histórias. Por outro lado, se desconfia da epifania do sr. Smith porque em Jesus, Deus se revelou totalmente, porque carga de água é que acredita nas revelações místicas dos teólogos católicos medievais? Se estava tudo revelado, para que precisavam os pensadores da sua Igreja de esclarecer mais alguma coisa? Smith era Cristão, acreditava em Cristo e teve uma revelação; uma revelação como muitas outras. A única diferença é que não foram enquadradas institucionalmente nas organizações religiosas existentes, desde logo na ICAR. Mas um crente mórmon terá a mesma legitimidade para confiar nos seus teólogos e fundadores que o meu amigo nos seus. De uma forma ou de outra, não passamos do mundo das ideias. Gostava de saber, já agora, que raio de coisa é essa do blogateismo… São ateus com blogues filiados nesse estranho objecto chamado “novo ateísmo”? E são todos assim superficiais? Não sei, esclareça-me. E tente ser profundo, se fizer o favor.
Olha, fiquei redundante… Não sei por via de que mistérios milagrosos, o meu comentário multiplicou-se. Queira já agora ter a bondade de apagar as repetições. Obrigado bem-haja por esta conversa.
Caro J
Quando digo que o discurso teológico é redundante é no sentido em que não acrescenta nada ao nosso conhecimento do mundo e da vida.
Eu percebo o que dizes, mas … e se acrescentar? É claro que estou a pensar num exemplo, como Wolfhart Pannenberg que te aconselho como leitura que colocou questões aos cientistas, segundo uma postura de diálogo entre teologia e ciência, de tal forma que esse emerge da dúvida em como a teologia possa ser mais científica e a ciência mais teológica. Não numa forma de concordismo como acontece com os partidários do design inteligente, mas como uma hipotética consonância, como se teologia e ciência fossem dois tons distintos, mas consonantes. Neste caso, o conhecimento científico do mundo natural é o conhecimento sobre o mundo que Deus criou. E como a realidade é uma só, criada por um Deus Criador, hipoteticamente, o conhecimento desenvolvido acerca do mundo natural deveria contribuir para o que sabemos sobre Deus, assim como o que sabemos sobre Deus deveria influenciar a forma como compreendemos o mundo natural.
Por alguma razão existe o prémio Templeton para o progresso das religiões (superior em valor ao Nobel) e que foi atribuido também a agnósticos como John Barrow ou Paul Davies, grandes divulgadores de ciência.
Por fim, quando nomes não existem que são grande promotores do diálogo entre ciência e fé, muito deles cientistas ou teólogos?
Ou seja, nada disso me parece redundante, logo, não creio que o discurso teológico o seja também …
… segundo premissas mitológicas e tradições indemonstráveis. Um exemplo de premissa mitológica e tradição indemonstrável pode ser Jesus Cristo.
Podias explicar-te melhor? Por outro lado, se é de História, aconselho-te a ler o último capítulo do livro de Antony Flew (Deus Existe), escrito por N.T. Wright, pois, penso que estás equivocado.
a sua versão de Deus é um pouco mais antiga do que a dos Mórmons
Podias explicar-te melhor? Qual a minha versão de Deus?
…tenho muitas dúvidas em relação à própria existência histórica do seu Cristo.
O que te leva a pensar assim?
Acho inclusivamente espantoso que pessoas inteligentes e cultas consigam acreditar em tais histórias.
Quem estará correcto então? Essas pessoas ou o J?
Por outro lado, se desconfia da epifania do sr. Smith porque em Jesus, Deus se revelou totalmente, porque carga de água é que acredita nas revelações místicas dos teólogos católicos medievais?
A que revelações místicas te referes?
Se estava tudo revelado, para que precisavam os pensadores da sua Igreja de esclarecer mais alguma coisa?
Para compreender essa Revelação com maior profundidade. Algo que é revelado deve ser interpretado e aprofundado, pois a verdade que encerra pode ser maior do que à primeira vista parece, não achas?
Gostava de saber, já agora, que raio de coisa é essa do blogateismo… São ateus com blogues filiados nesse estranho objecto chamado “novo ateísmo”? E são todos assim superficiais?
São ateus que usam a blogosfera para aprofundar e divulgar o seu ateísmo. Considero-o diferente daquele que se lê nos livros ou artigos filosóficos porque se auto-referência, pouco se define explicitamente relativamente à base filosófica em que assenta o seu pensamento e nutre-se de discussões, por vezes, superficiais sobre tudo e sobre nada. Dei um nome porque verifico que chega a muitas pessoas, cujas ideias poderão formar-se através desses blogs.
Nem todos são superficiais, mas é raro encontrá-los. A maioria dialoga com falsos absolutos. Eu confesso-me com sorte por ter pessoas como tu e o Gajo que comentam no meu blog elevando o nível de discussão dos assuntos.
No meu blog procuro ir em profundidade na medida das minhas limitações e de resto abandono-me à relacionalidade com pessoas como tu, com as quais podemos crescer e aprofundar juntos estes assuntos.
Miguel, mais uma vez obrigado pela simpatia (que não é frequente nos seus correlegionários…). Agora estou a trabalhar e não tenho tempo para te responder, logo à noite, com mais tranquilidade, procurarei fazê-lo. Bem sei que nenhum de nós irá mudar de ideias, mas também penso que não seja essa a importância destas trocas de impressões. Necessariamente superficiais, porque nem nós somos teólogos ou filosófos e porque a blogosfera (ateista, católica ou reikiana) tem a sua própria dinâmica de imediatismo e concisão. Não deixando de ser uma ferramenta preciosa, nomeadamente ao estabelecer pontes de diálogo, como agora acontece. E é essa uma das principais mais-valias deste novo média. Quanto mais não seja, dá-nos pistas de estudo e aprofundamento, é um ponto de partida para o diálogo e para o conhecimento. Quanto a mim, sou ateu-agnóstico, mas tenho um grande respeito e fascínio pelo fenómeno religioso e da crença em geral, e sobretudo pela história das religiões. Enfim, mal possa volto cá para dar réplica às tuas instâncias. Até já!
Aguardo com ansiedade tranquila a tua interessante perspicácia habitual 🙂
O discurso teológico é irrelevante no que toca à nossa percepção real do mundo, ou do mundio real, como queiras. Tudo o que objectivamente sabemos acerca da vida e do universo provém da ciência e do pensamento naturalista e materialista. O mundo da teologia é o mundo da especulação religiosa e do misticismo. A religião católica é hoje muito diferente do que era na Idade Média porque teve de se adaptar à marcha imparável do conhecimento científico. Quantas resmas de (profundíssimo, sem dúvida) pensamento teológico geocêntrico não teve de ir para o lixo depois (muito depois, porque a tua Igeja ainda se agarrou à geografia aristotélica por muitos anos…) de Galileu? Sou todo a favor do diálogo entre fé e ciência. Cada um no seu canto, já que são domínios completamente diferentes da experiência humana. Da mesma forma, defendo o diálogo entre cientistas e artistas, por exemplo. Todo o diálogo é enriquecedor. Venha ele. Deus (seja ele qual for) não é uma realidade objectiva a não ser na mente esperançosa dos crentes. No mundo real, que é o mundo da ciência, tem o mesmo valor das fadas. Não se pode provar que não existem (prove-me que não existem fadas…), mas são conceitos perfeitamente dispensáveis no que toca ao conhecimento factual e objectivo do mundo. Mesmo que tenhamos uma perspectiva panteista de Deus.
Sobre Jesus Cristo é simples. Não há simplesmente qualquer evidencia histórica da sua existência. O que há, quanto muito são evidências literárias. As mesmas que nos poderiam fazer crer em Ulisses, por exemplo. Mas para um historiador sério (e o pobre do Flew, definitivamente, não o é) isso não chega. E se quer referências mais credíveis relativamente ao tema, de historiadores até mais próximos da sua fé, aconselho por exemplo a leitura de E.P.Sanders ou de Bart Ehrman. Se, como parece, o meu amigo, é um cristão esclarecido, alargue um pouco o âmbito das suas leituras. Flew é uma carta fora do baralho para quem quiser estudar seriamente esta matéria. Jesus Cristo, como o Deus judaico-cristão, é uma questão de crença, não de História. Isto é, Jesus Cristo é sem dúvida um personagem poderoso. Mas o que é poderoso é a ideia de Jesus, não tanto o homem Jesus. Sobre este último, não há pura e simplesmente qualquer prova coeva, nenhuma referência contemporânea, nenhuma fonte documental, nenhuma prova material. O que há são lendas, narrativas fixadas em forma de texto muitas décadas após a sua morte, por membros de uma seita religiosa então em formação. Isto é, não por fontes independentes, mas por fontes militantes, a quem interessava a criação de um mito poderoso e agregador. E para um historiador sério, as fontes militantes têm valor apenas quando há possibilidade de cruzamento com outras fontes. O que não é o caso. Quando me perguntas quem está correcto, se eu ou as pessoas que acreditam cegamente em textos antigos, eu respondo que sou eu e que não estou sozinho. Jesus Cristo não é matéria de facto, é matéria de fé. Dito isto, admito perfeitamente que tenha existido no Médio Oriente por aquela altura, um candidato a Messias (mais um) com esse nome. E até percebo que alguém com educação científica e fé religiosa, como tu, acredite piamente na sua existência mesmo sem provas. O que não concebo, de todo, é que, em cima disso, ainda acreditem na dimensão miraculosa e mágica do tal candidato. Acreditam, porque alguém contou e porque outros foram acrescentando pontos (profundíssimos, admito), sem mais.
A tua versão de Deus, partindo do princípio que és católico, é a versão Católica Apostólica Romana.
Quanto às revelações místicas dos teólogos da tua Igreja, responde-me tu: o que é te leva a crer que estes tiveram acesso a lampejos da verdade divina? Que são autoridades (profundas) em relação ao que Deus É ou quer? Tiveram revelações ou foi simples labor intelectual? Como é que conseguiram explicitar e compreender a revelação cristica? Não foi com a inspiração do Espírito Santo? Foi. E agora demonstra-me que a inspiração do Smith é menos legítima. A única diferença que vejo é a ausência de uma instituição pré-existente.
O blogateismo, por outro lado, é como o blocatolicismo, o blogcomunismo ou blogbenfiquismo. São pessoas comuns a expressarem-se e a conversar, pro intermédio de um meio que não existia antes e que veio propiciar uma maior democratização da comunicação no espaço público. Umas vezes com mais profundidade, outras com menos, depende. Dito isto, não concordo, de todo, com a tua caricatura.
Caro J,
Tudo o que objectivamente sabemos acerca da vida e do universo provém da ciência e do pensamento naturalista e materialista.
A questão que coloco é: como justificas isto segundo o pensamento naturalista e materialista? Não será este esgotar da realidade na materialidade um dogma materialista?
O mundo da teologia é o mundo da especulação religiosa e do misticismo.
Muito sinceramente não estou de acordo contigo. Especulação também existe em ciência e não é por isso que essa se torna irrelevante. Por outro lado, existem factos, experiências e raízes racionais no desenvolvimento do pensamento teológico.
Sou todo a favor do diálogo entre fé e ciência. Cada um no seu canto, já que são domínios completamente diferentes da experiência humana.
Permite-me sugerir-te a leitura do meu primeiro post. O diálogo não se faz cada um no seu canto. Isso é independência.
Deus (seja ele qual for) não é uma realidade objectiva a não ser na mente esperançosa dos crentes.
Eu penso que não sendo uma realidade objectiva, não pode estar na mente dos crentes, mas sendo Deus, base de toda a existência, não depende da mente dos crentes. Pode acontecer, sim, maior ou menor sensibilidade para a espiritualidade, mas não vejo qualquer razão para que o conhecimento da realidade se esgote no método científico. Assim como Deus não está ao nível e valor de seres fictícios, como fadas. Quando se coloca o conceito de Deus que se rejeita a esse nível, sou tão ateu como tu porque não acredito num deus imaginário.
Não se pode provar que não existem (prove-me que não existem fadas…), mas são conceitos perfeitamente dispensáveis no que toca ao conhecimento factual e objectivo do mundo.
O conceito de fada, imaginário por sinal, existe enquanto se imagina como causa entre outras causas (veja-se a Sininho, por exemplo). Ora, Deus não é uma causa entre outras causas, pelo que não está ao mesmo nível de análise das fadas ou outros seres fictícios.
Sobre Jesus Cristo é simples. Não há simplesmente qualquer evidencia histórica da sua existência.
Em primeiro lugar, o texto que sugeri está no livro de Flew, mas – como disse – não é de Flew, mas de Nicholas T. Wright, um académico de renome em Novo Testamento.
De E.P. Sanders Jesus in Historical Context Por outro lado, na wikipedia encontrei esta citação
In The Historical Figure of Jesus, E.P. Sanders used Alexander the Great as a paradigm—the available sources tell us much about Alexander’s deeds, but nothing about his thoughts. “The sources for Jesus are better, however, than those that deal with Alexander” and “the superiority of evidence for Jesus is seen when we ask what he thought.”[115] Thus, Sanders considers the quest for the Historical Jesus to be much closer to a search for historical details on Alexander than to those historical figures with adequate documentation.
Lendo o trabalho de Bart Ehrman não vi qualquer alusão à inexistência histórica de Jesus.
Por fim, ainda na wikipedia se lê
The scholarly mainstream not only rejects the myth thesis,[123] but identifies serious methodological deficiencies in the approach.[124] For this reason, many scholars consider engaging proponents of the myth theory a waste of time,[125] comparing it to a professional astronomer having to debate whether the moon is made of cheese.[126] As such, the New Testament scholar James Dunn describes the mythical Jesus theory as a “thoroughly dead thesis”.[127]
[123] Powell, Mark Allan (1998). Jesus as a Figure in History: How Modern Historians View the Man from Galilee. Louisville, Ky.: Westminster John Knox Press. p. 168. ISBN 978-0-664-25703-3. *Weaver, Walter P. (1999). The historical Jesus in the twentieth century. Harrisburg, Pa.: Trinity Press International. pp. 71. ISBN 978-1-56338-280-2. *Voorst, Robert E., Van (2000). Jesus outside the New Testament: an introduction to the ancient evidence. Grand Rapids, Mich.: W.B. Eerdmans. pp. 16. ISBN 978-0-8028-4368-5.
[124] Wood, Herbert George (1934). Christianity and the Nature of History. Cambridge: Cambridge University Press. pp. xxxiii & 54. ISBN 9781001439921.
[125] McClymond, Michael James (2004). Familiar Stranger: An Introduction to Jesus of Nazareth. Grand Rapids, Mich.: W. B. Eerdmans. pp. 23–24. ISBN 978-0802826800.
[126] Wright, N. T. (2004). “Jesus' Self Understanding”. in Davis, Stephen T.; Kendall, Daniel; O’Collins, Gerald. The Incarnation: An Interdisciplinary Symposium on the Incarnation of the Son of God. Oxford: Oxford University Press. p. 48. ISBN 978-0199275779.
[127] J. G. D. Dunn, The Christ and the Spirit, Volume I: Christology, (Eerdmans / T & T Clark, 1998), page 191.
Logo, a tua tese parece-me suficientemente questionada.
A tua versão de Deus, partindo do princípio que és católico, é a versão Católica Apostólica Romana.
Tens razão.
o que é te leva a crer que estes tiveram acesso a lampejos da verdade divina?
2000 anos de história
Que são autoridades (profundas) em relação ao que Deus É ou quer?
Uma: Jesus.
Tiveram revelações ou foi simples labor intelectual?
Nem por isso. Tal como está explícito nos Documentos do Concílio Vaticano II, Dei Verbum 4, em Jesus, Deus revela-se totalmente. Contudo, importa desenvolver pensamento em torno dessa Revelação que é Ele mesmo (vivo no meio de nós, como se crê). Não para que seja o pensamento “daquele” ou “daquela”, mas d'Ele mesmo que através do Espírito nos ensina todas as coisas (Jo 14, 25-26), tal como fez com os discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35).
Como é que conseguiram explicitar e compreender a revelação cristica? Não foi com a inspiração do Espírito Santo? Foi. E agora demonstra-me que a inspiração do Smith é menos legítima.
Do Catecismo da Igreja Católica, 67: “No decurso dos séculos tem havido revelações ditas «privadas», algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. Todavia, não pertencem ao depósito da fé. O seu papel não é «aperfeiçoar» ou «completar» a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numa determinada época da história. Guiado pelo Magistério da Igreja, o sentir dos fiéis sabe discernir e guardar o que nestas revelações constitui um apelo autêntico de Cristo ou dos seus santos à Igreja.
A fé cristã não pode aceitar «revelações» que pretendam ultrapassar ou corrigir a Revelação de que Cristo é a plenitude. É o caso de certas religiões não-cristãs, e também de certas seitas recentes. fundadas sobre tais «revelações».”
Logo, se a inspiração de Smith não ultrapassa ou corrige a Revelação em Cristo, não será legítima? Penso que sim, mas se ultrapassa, então cabe a Smith (ou seguidores desse pensamento) justificar se essa “revelação” vem de Smith ou mesmo de Jesus, uma vez que o pensamento da Igreja Católica é claro sobre essa matéria. Podes não concordar, mas não cabe à Igreja Católica justificar que tem ou não razão, mas a Smith.
O blogateismo, por outro lado, é como o blocatolicismo, o blogcomunismo ou blogbenfiquismo. (…) não concordo, de todo, com a tua caricatura.
Na verdade não precisas de concordar, mas penso que estás a interpretar a expressão como pejorativa e não é. Tal como reconheces, desenvolve-se pensamento ateísta, mais ou menos profundo, através “de um meio que não existia antes”, logo, vejo aí todas as razões para a emergência de uma categoria que apelidei de “blogateísmo”. Oxála fosse todo ele inquietante, como o teu se esforça por ser …
Ora bem, pano para mangas… Miguel, mais uma vez, apelo à tua paciência, as tuas interpelações reclamam um tempo e uma disponibilidade que nesta altura não tenho. Mal possa, em breve, venho cá continuar a conversa. Bom fim de semana!
Caro J,
como sempre, aguardo com entusiasmo as tuas inquietantes observações.
Abraço
«A questão que coloco é: como justificas isto segundo o pensamento naturalista e materialista? Não será este esgotar da realidade na materialidade um dogma materialista?»
Justifico da seguinte forma: Tudo o que objectivamente sabemos acerca da vida e do universo provém da ciência e do pensamento naturalista e materialista. Dogma? Pois. Dá-me um único exemplo de algo que o pensamento religioso tenha explicado sobre a realidade e que seja comprovável, demonstrável e replicável. Dogma é acreditar sem questionar que o mundo tem seis mil anos, que os patriarcas judaicos viviam seiscentos anos, que houve um dilúvio global e que Noé comprimiu todo o mundo animal num barco ou que a humanidade nasceu no jardim de éden a partir de um adão e de uma eva. Dir-me-ás que tudo isso é linguagem simbólica. Eu digo-te que fazes parte de uma elite da tua Igreja e que a maioria dos crentes tem um entendimento mais literal dos livros sagrados da tua fé. Dogma era acreditar que a terra era plana e que o universo girava em torno da mesma. Entretanto, a ascensão e a autonomização do pensamento científico destruiu esses dogmas e a tua Igreja viu-se forçada a aceitar as evidências. E a aceitar que, se queria efectivamente perceber a realidade, tinha de abandonar verdades antigas e a construir observatórios astronómicos e laboratórios. Mas numa coisa tens razão: a realidade não se esgota na materialidade, o mundo das ideias e das emoções humanas aí está para o comprovar. Mas mesmo aí, nesse universo abstracto, nos meandros da mente humana e da consciência, a ciência tem feitos progressos extraordinários e hoje percebemos muito melhor como funcionam certos mecanismos neurológicos ou psicológicos, entre eles o fenómeno da crença.
Que existem raízes racionais para o pensamento teológico? Concordo. E a partir dessa base constroem-se depois complicadas elaborações intelectuais, parábolas, aforismos, lendas e preceitos morais. Mais uma vez, não saímos do mundo das ideias.
Quais factos e experiências? Milagres? Revelações divinas? São esses os teus “factos”? Por outro lado, fico sinceramente espantado que alguém que tem uma formação académica superior, como tu, consiga suspender a inteligência e o conhecimento para não perceber a diferença entre especulação religiosa e especulação científica…
Já li o teu primeiro post. Está interessante. Mantenho: cada um no seu canto, são domínios diferentes da experiência humana.
E a separação não só é desejável como inevitável. A ciência não é uma cosmovisão, não é uma ideologia, não é uma doutrina, é tão só um método de conhecimento, a melhor ferramenta que temos para perceber a realidade. Os “sentidos” que as religiões pretendem dar ao labor científico são questões que transcendem, na prática, a ciência que é, efectivamente, um processo independente do pensamento mágico. Pode partir deste para o comprovar ou rejeitar (como por exemplo, analisando com carbono 14 o sudário de Turim). É indiferente se o cientista é crente religioso ou não, o trabalho científico desenrola-se autonomamente, mas em relação ao “sentido”, convém não confundir religião com ética. A filosofia, por exemplo, terá um papel muito mais profundo no domínio científico. Em relação à questão teologia/ciência, o diálogo que pode existir entre esses dois cantos da experiência humana terá mais a ver com a dimensão moral da fé espiritual. O divino é um canto e a ciência é outro canto. Assim como as religiões são um canto e o Estado é outro canto. E obviamente que isso não obsta ao diálogo.
«Eu penso que não sendo uma realidade objectiva, não pode estar na mente dos crentes, mas sendo Deus, base de toda a existência, não depende da mente dos crentes. Pode acontecer, sim, maior ou menor sensibilidade para a espiritualidade, mas não vejo qualquer razão para que o conhecimento da realidade se esgote no método científico. Assim como Deus não está ao nível e valor de seres fictícios, como fadas. Quando se coloca o conceito de Deus que se rejeita a esse nível, sou tão ateu como tu porque não acredito num deus imaginário»
Ok, respeito a tua crença. Isto é, de que o Deus judaico-cristão é a “base de toda a existência” e que não é uma causa entre outras causas. Para um hindu será Brahma, para um pagão será a “Grande Mãe”, para um muçulmano será Allah, etc.. Enfim, está na mente dos crentes. Para mim todos deuses são imaginários. E para provar que não existem fadas não basta proclamar que são, por sinal, “seres imaginários”. Quanto a mim, penso que nunca conseguiremos provar objectivamente a existência do teu Deus, visto ser também um conceito imaginário, daí ser agnóstico em relação a Deus (qualquer um), é efectivamente impossível demonstrar que não existem. Por outro lado, que o teu Deus “não é uma causa entre outras causas” é a tua opinião, fundamentada em doutrina e partilhada por muita gente, é certo, mas não passa disso. No meu entender e no entender de milhões de outros como eu, Deus, os anjos ou as fadas pertencem ao reino do fictício. O que os torna diferentes é seriedade e a militância com que se encaram. Deus é um conceito importantíssimo, muito mais do que as fadas ou os gnomos, porque tem, efectivamente, expressão concreta e prática na nossa existência, por via do comportamento individual e social dos crentes. Ao mobilizarem-se, por exemplo, contra a interrupção voluntária da gravidez ou para a Jihad. Isto é, pela via da dimensão moral e ideológica das religiões.
Sobre Jesus Cristo. De Sanders e Ehrman li a obra e não apenas alguns excertos da wikipédia. E mantenho, não há evidências históricas da sua existência. Muito menos da sua dimensão miraculosa. Dito isto, e analisando as mais diversas fontes, sim, tudo indica que existiu na Palestina ao tempo do Império Romano, um candidato a Messias chamado Jesus de Nazaré que se destacou de outros e que deu origem a uma seita religiosa derivada da tradição judaica. Mas o que sabemos, factualmente, à luz da ciência histórica e da arqueologia e para além da literatura militante do Novo Testamento, é pouquíssimo, sendo que tudo o que posteriormente se escreveu sobre ele cai, inevitavelmente, mais no campo do mito do que no campo da História.
Agora, que a ideia de Jesus Cristo, a mensagem que lhe atribuiram, é poderosa? Sem dúvida, poderosíssima. Assim como ainda é a ideia abrâmica anterior. Isso sim, já é História.
Portanto, os pensadores da tua Igreja tiveram acesso à verdade divina porque a tua religião tem dois mil anos… Ou seja, consideras verdadeira a tua versão de Deus, porque a tua crença é antiga. Agora, o que tens de fazer, se fores intelectualmente honesto, é extrair as devidas consequências do critério da antiguidade: torna-te hindu, panteista, zoroastriano, budista ou jainista. Há mais, mas qualquer uma destas é mais antiga do que o cristianismo. E daqui a 1900 anos o mormonismo também será suficientemente antigo para ser verdade, é isso?
Portanto, os pensadores da tua Igreja são autoridades profundas em relação a Deus por causa de Jesus. Está bem. E os pensadores budistas são autoridades profundas em relação ao Mistério por causa de Sidharta e assim por diante. Está certo. Se os documentos do Concílio Vaticano II o dizem, deve estar, pois, está escrito, deve ser verdade. E passamos ao conceito, igualmente interessante, da «autoridade». Tu aceitas sem questionar a «autoridade da Igreja» e o iluminado Magistério de Roma. Eu não. Dir-me-ás que não estou a ser profundo e que um crente esclarecido também tem dúvidas e espírito crítico, que também “questiona”. Está certo. E eu digo-te que questiona só até certo ponto e que estou para ver um católico a disputar os dogmas da sua Igreja (fixados pelas “autoridades” que se dizem detentoras da verdade de Cristo) sem sofrer consequências pouco simpáticas como ser taxado de herético ou ser excomungado. Seja como for, citando o nosso amigo Galileu, “e pur, si muove”…
E não aceito a tua argumentação, baseada simplesmente na tal autoridade das chefias da tua Igreja, no que toca à legitimidade e à verdade da revelação de Joseph Smith. Ou mesmo à legitimidade e à verdade judaica, muito mais antiga, que não reconhece Jesus como o seu Messias. E tens razão, a fé cristã, ou melhor, a fé católica, não pode aceitar «revelações» alternativas.
Até porque um dos segredos da longevidade de uma religião é precisamente a sua coerência doutrinal. É por isso é que, mesmo que a Igreja Católica se mova no sentido de se adaptar à marcha das civilizações, haverá sempre certas verdades inamovíveis que a tornam única, como a Imaculada Conceição, a Santíssima Trindade ou a Ressureição de Jesus. A fé católica não aceita revelações fora do âmbito canónico que referes. As outras fés é que não se incomodam muito com isso. E Smith justificou tudo o que tinha a justificar no “seu” Livro de Mórmon, revelado por um mensageiro celestial chamado Moroni e que os seus seguidores aprofundaram e continuarão a aprofundar, como fizeram os seguidores da tua fé.
E agora vou para a praia com os meus filhos, que, isso sim, é sagrado para mim 🙂 Abraço!
De facto, talvez o que seja problemático para um cristão seja o agnosticismo. Não tanto o agnosticismo intelectual. Este último acontece por vezes mesmo ao mais fervoroso dos crentes, a dúvida.
O que parece verdadeiramente problemático de um ponto de vista cristão é o agnosticismo prático. Aquele em que se duvida de tudo e não se acredita em nada a não ser no eu e nos interesses do eu. A indiferença pelo outro que decoore do agniosticismo prático. Porque não existe nenhuma razão lógica, nenhum imperativo ético, para a generosidade pura.
Mas, pelo que li no último parágrafo do último comentário do J não parece ser esse o seu caso. 🙂 Parabéns
Caro J,
Na Igreja Católica, um dogma é uma verdade absoluta inquestionável enquanto revelação de Deus. É verdade que expressa por palavras humanas e, por isso, sujeitas a interpretação na sua forma e não na sua essência. Daí que os dogmas possuam histórias porque o mais certo é levarmos tempo até que possamos atingir com grande profundidade o seu significado.
Dogma é acreditar sem questionar que o mundo tem seis mil anos, que os patriarcas judaicos viviam seiscentos anos, que houve um dilúvio global e que Noé comprimiu todo o mundo animal num barco ou que a humanidade nasceu no jardim de éden a partir de um adão e de uma eva.
… felizmente não são dogmas …
a maioria dos crentes tem um entendimento mais literal dos livros sagrados da tua fé
Não creio. Podemos recuar até o Papa Leão XIII, na Providentissimus Deus a advertência contra o literalismo Bíblico. Por outro lado, esse diminui o real valor da Escritura quando lhe atribui um significado científico que não tem, nem se pretende que tenha.
Dogma era acreditar que a terra era plana e que o universo girava em torno da mesma.
… felizmente, também estes não são Dogmas …
Mas numa coisa tens razão: a realidade não se esgota na materialidade, o mundo das ideias e das emoções humanas aí está para o comprovar. Mas mesmo aí, nesse universo abstracto, nos meandros da mente humana e da consciência, a ciência tem feitos progressos extraordinários e hoje percebemos muito melhor como funcionam certos mecanismos neurológicos ou psicológicos, entre eles o fenómeno da crença.
Mesmo que consigamos explicar cada vez melhor o processo cognitivo, penso que em nada fica diminuída a abertura à religiosidade.
Que existem raízes racionais para o pensamento teológico? Concordo. E a partir dessa base constroem-se depois complicadas elaborações intelectuais, parábolas, aforismos, lendas e preceitos morais. Mais uma vez, não saímos do mundo das ideias.
Muito pelo contrário. A teologia está profundamente enraizada na vida e quando não possui expressão práctica na vida das pessoas, tende a perder o seu valor. Foi a estudar teologia, lendo e confrontando o leio com teólogos, que fui aprofundando a minha fé, com repercussões imediatas no quotidiano.
Quais factos e experiências? Milagres? Revelações divinas? São esses os teus “factos”?
A experiência de providência do quotidiano. O testemunho de fé na vida prática. Os actos de amor realizados. A experiência de amar como Deus ama (ou seja, no dom-total-de-mim-mesmo) nos relacionamentos. Tudo isto, apesar de haver mais, são factos que confirmam a fé de quem a tem e neles contrói a sua história.
fico sinceramente espantado que alguém que tem uma formação académica superior, como tu, consiga suspender a inteligência e o conhecimento para não perceber a diferença entre especulação religiosa e especulação científica…
Muito pelo contrário. Quem trabalha comigo em investigação e conversa comigo sobre ciência e fé sabe que não me contento com pouco e que a exigência de excelência em ambos os assuntos é a mesma. Se suspendesse a minha inteligência e conhecimento seria impossível ler um só texto teológico, ou filosófico, por mais simples que fosse.
Acontece é que o meu posicionamento na interacção entre ciência e fé é o diálogo, não o conflito, independência ou integração, se seguirmos a tipologia de Ian Barbour e que explorei no primeiro post deste blog. A mim parece-me que te enquadras entre o conflito e a independência, embora me incline mais para o segundo.
Os “sentidos” que as religiões pretendem dar ao labor científico são questões que transcendem, na prática, a ciência que é, efectivamente, um processo independente do pensamento mágico.
Porém o pensamento teológico e filosófico em ciência e fé exige muito trabalho, logo não é mágico propriamente dito.
em relação ao “sentido”, convém não confundir religião com ética.
Não percebi como é a ética que dá sentido …
Em relação à questão teologia/ciência, o diálogo que pode existir entre esses dois cantos da experiência humana terá mais a ver com a dimensão moral da fé espiritual.
Embora a dimensão moral seja muito importante – como apontas – penso que nesse diálogo se chega a uma visão mais integral da realidade na sua totalidade.
O divino é um canto e a ciência é outro canto.
Entendo o que queres dizer pensando que ciência e teologia dão respostas, mas a questões diferentes. Contudo, pelo que tenho lido e estudado, a sua interacção no diálogo revela-se mutuamente criativa na compreensão da realidade.
Para mim todos deuses são imaginários. (…) Quanto a mim, penso que nunca conseguiremos provar objectivamente a existência do teu Deus, visto ser também um conceito imaginário, daí ser agnóstico em relação a Deus (qualquer um), é efectivamente impossível demonstrar que não existem.
Percebo e compreendo. No meu caso, a experiência de vida na comunidade Cristão, isto é, viver a experiência da fé com os outros é muito importante.
Contudo, por “objectivamente” penso que te referes ao conhecimento científico-natural. Parece-me importante salientar que a experiência da fé é também muito objectiva, faz-se no dia-a-dia, nos relacionamentos com os outros, com a natureza, com Deus. É racional e não imaginária, caso contrário seria impossível haver confissões religiosas, pois cada um imaginaria como lhe apraz.
No meu entender e no entender de milhões de outros como eu, Deus, os anjos ou as fadas pertencem ao reino do fictício.
Se o Deus que rejeitas pertence ao reino do fictício sou tão ateu quanto tu. Fada, anjos, gnomos, unicórnios, etc … são seres (imaginários) entre outros seres. Causa segundas fruto da nossa imaginação. Deus é Causa Primeira e se o imaginássemos, o mais provável é não imaginarmos Deus ipso facto.
Contudo, reconheço encontrar no teu pensamento uma abertura tal que sinto espaço para o diálogo como acolhimento, o que é bastante enriquecedor.
De Sanders e Ehrman li a obra e não apenas alguns excertos da wikipédia.
Quais as obras de leste?
os pensadores da tua Igreja tiveram acesso à verdade divina porque a tua religião tem dois mil anos
O acesso que falas vem de Jesus Cristo, unicamente.
Ou seja, consideras verdadeira a tua versão de Deus, porque a tua crença é antiga
Nem por isso. Considero-a verdadeira pela experiência de vida que tenho e por ver sentido nas reflexões que faz (particularmente Ratzinger). Logo, reconheço que se tivesse nascido numa outra cultura ou tempo na História, provavelmente teria outra crença. Por isso, aquilo que estás a implicar – penso – é que certeza, certeza, só no fim dos tempos. Concordo. Até lá, sigo por onde a fé e a razão me levar.
Tu aceitas sem questionar a «autoridade da Igreja» e o iluminado Magistério de Roma. (…) Seja como for, citando o nosso amigo Galileu, “e pur, si muove”…
Sim e não. Considero que a Igreja, por ter 2000 anos de história e reflexão teológica, estará logicamente mais perto da Verdade do que eu estarei no meu tempo de vida. Mas isso não me impede de questionar (como reconheceste) o que está, por exemplo, no Catecismo da Igreja Católica, não por ter propriamente uma ideia diferente, mas por ter lido outros textos teológicos credíveis que mostram avanços que ainda não foram assimilados.
Acho curioso o facto de usares o exemplo de Galileu que usada frequentemente a metáfora dos dois livros (natureza/Escritura), assim como dizia que a Sagrada Escritura mostra-nos como se vai para o céu, não como vai o céu …
E agora vou para a praia com os meus filhos, que, isso sim, é sagrado para mim 🙂 Abraço!
Excelente opção que tomaram 🙂
Obrigado pelas tuas reflexões. Apesar de não partilhar da mesma vivência de fé que os Mórmons, isso não me impede valorizar o facto de ser tão Cristãos (ou mais) quanto eu.
Meu caro, antes de mais, queria agradecer-te mais uma vez a privilégio e o prazer desta conversa. E não duvides que para mim é enriquecedora. Quanto mais não seja (e é muito mais do que isso), porque me obrigaste a ir buscar novamente à estante A Verdadeira História de Jesus e Os Monges que Trairam Jesus, e fica assim respondida uma das tuas questões. Às restantes não vou responder já, queria apenas assinalar este parentesis de bem-haja e contexto. Como já deves ter percebido, sou um pouco diletante nestas matérias, sou apenas um cidadão comum e não terei certamente a profundidade de muita gente que pensou e escreveu sobre elas. Não sou, por outro lado, o que se poderia chamar de ateu militante ou evangélico, a minha postura filosófica até pende mais para o agnosticismo. Acredito no amor, acredito na liberdade, acredito na beleza, acredito na família, valores que creio também partilharemos, visto pareceres-me um ser humano decente, e que não carecem de credo religioso. Seja como for, apaixona-me o universo da espiritualidade e muitas das minhas leituras passam por aí. Penso que a religiosidade é um dos traços essenciais da condição humana e que deve ser encarada com respeito e abertura. Ao contrário de muitos ateus, não penso que venha daí mal ao mundo. Vira, não virá, depende, como em qualquer outra circunstância humana. Combata-se acima de tudo o fanatismo, a ignorância e a intolerância. De resto, a felicidade é um campo aberto. A minha “queda” pelo Mistério, pela história das religiões e pelo transcendente é tanta, vê lá tu, que até editei há uns tempos uma livro chamado Pessoa e Deus, uma antologia de espiritualidade pessoana. Se procurares no site lulu.com, encontrarás. Também tenho muito a agradecer à tua fé. Desde logo Bach! 🙂 Acresce que a minha cara-metade é instrutora de yoga e por ela tenho acesso a outro tipo de tradições e ideias, igualmente fascinantes. Seja como for, queria apenas que entendesses que o meu interesse não é o de demolir crenças, mas sim o de interpelar para perceber. E que relevasses alguma eventual rispidez em alguns dos meus comentários. Quando respondo sai tudo “de jacto” e nem semnpre as palavras serão bem medidas, peço desculpa. Mas está a ser de facto enriquecedor e é bom ter interlocutores assim. Mal possa e enquanto queiras prosseguir este diálogo, voltarei para responder às tuas respostas. Bom resto de fim de semana!
Caro J,
obrigado pelas amáveis palavras e partilha de vida. Penso como é importante haver mais testemunhos como o teu,isto é, pessoas não-crentes com abertura às questões religiosas para as entender e que não se contentam com a superficialidade dos argumentos, mas aprofundam-nos.
Partilhamos muito valores 🙂
É com muito gosto e interesse que continuo o nosso interessante diálogo.
Abraço
Finalmente tive um tempo para te responder com mais calma.
Ok, sejamos rigorosos, efectivamente os exemplos dados não são dogmas oficiais. Substitui por favor por «Imaculada Conceição, a Santíssima Trindade ou a Ressureição de Jesus», essas sim serão verdades absolutas inquestionáveis enquanto revelação de Deus. Mantenho o resto do raciocínio. É a tua crença, eu não acredito em nada disso e muito menos que sejam revelações divinas. O resto, sobretudo essas ideias exóticas do Antigo Testamento, são lendas e metáforas. Nunca houve um dilúvio, Moisés não separou as águas do Mar Vermelho, não existiram matusalens, Adão e Eva são criaturas imaginárias e tudo isto é fado, perdão, poesia mística aberta às exegeses. OK, agora é preciso espalhar a palavra pelos crentes nos púlpitos paroquiais, porque pela minha experiência pessoal, a maior parte dos católicos – inclusive catecistas e sacerdotes – que conheço é um pouco mais literalista e não está a par do Provindentissimus Deus. Seja como for, e olhando por exemplo para a contemporaneidade cristã americana (do Norte e do Sul, mas sobretudo do Norte), tenho de reconhecer que a fé Católica, mau grado a queda para a superstição populista, é das mais sofisticadas e progressistas que conheço, a que não é alheio o facto de ter como base um modelo institucional hierarquizado, centralizado e coerente no discurso e um percurso histórico de exercício de poder temporal ou de beneplácito do poder secular. De uma forma ou de outra, quem me dera que todos os católicos fossem como tu ou alguns dos teus comentadores aqui do blog. Infelizmente não são, pois a verdade inapelável é que cada um imagina como lhe apraz, mesmo obedecendo a um conjunto de normas básicas, necessárias para garantir a homogeneidade mínima do credo.
Quanto à ciência/religião, sim, defendo que são domínios independentes e que não se devem “misturar” (como se tal fosse possível…), nesse sentido estarei mais próximo da posição de Stephen J. Gould. Por todas as razões e mais algumas e nenhuma delas necessariamente menos dignificante para o universo religioso.
Vejo, no entanto, problemas bem concretos quando se tentam associar domínios inconciliáveis. No caso ciência/religião, olho para o fenómeno (preocupantíssimo) do criacionismo a tentar alastrar pelo sistema educativo e académico norte-americano; no caso estado/religião, olho para o islamismo político e arrepio-me. São dois exemplos bem flagrantes e actuais da insensatez de não ter fronteiras bem-demarcadas entre os mundos.
Quando me refiro ao “sentido” da ciência, estava mais acompanhar as tuas palavras, por si só, a ciência não tem “sentido” nem deixa de ter, é um método de conhecimento. Daí que também não perceba muito bem que tipo de “sentido” é que as religiões poderão dar à ciência. A única questão que o “sentido” me suscita é a questão ética ou moral e que se relaciona com a “intenção” do cientista. No seu labor científico de procurar respostas e soluções o cientista deve ser inteiramente livre e independente e deixa, como tu deixas, como deixou Darwin ou como deixou Galileu, ambos homens devotos, a religião fora do laboratório.
Enquanto ser humano ético (ou não) pode pensar nas consequências do seu trabalho, isto é, pode ter ou não uma conduta moral ou prosseguir ou não uma determinada agenda moral (vide ICAR vs investigaçãos biomédica), mas não carece de sentido cósmico para fazer ciência. E essa questão do imperativo ético científico também é só por si discutível. Se Darwin ou Galileu, para utilizar os mesmos exemplos, tivessem sido fieis à sua crença religiosa em vez de serem fiéis à liberdade científica na procura da verdade, se não se tivessem enveredado por um pensamento independente, ainda teríamos andado mais uns anos a acreditar em estórias da carochina, perdão, em mitos religiosos. De resto, muitos ainda acreditam. E não é só por falta de informação. É sobretudo porque privilegiam a religião enquanto meio de perceber a realidade, em vez da ciência. Eu também leio textos teológicos, mas percebo muito bem a diferença entre uma especulação religiosa e um artigo científico. Entre outras, o primeiro conduz a uma verdade subjectiva, o segundo aponta para uma verdade objectiva. Da mesma forma que os teus “factos” são experiências subjectivas. Não são evidências de realidades universais, são evidências de realidades humanas.
«Uma visão mais integral da realidade na sua totalidade» é uma noção abstrata que tu que lhe conferes à posteriori (ou à priori). A realidade, para a ciência, é o que é, é o que resulta das evidências concretas e dos factos, com ou sem visão «mais integral». Por outro lado, a tua visão mais integral é diferente da visão mais integral de um muçulmano. Em termos cósmicos, não haverá um sentido, haverá vários sentidos. Método científico só há um.
Como tu, também não sou contra o diálogo.
Há uns tempos, há muito tempo, navegava nas águas da juventude comunista portuguesa, nunca tive cartão, mas militava com o mesmo ardor, trabalhei na festa do avante, fui eleito para a assembleia da minha universidade numa lista da “jota”, reuniões, festas, colagens, grafitis e mobilizações populares, lutávamos pelos pobres e pelos oprimidos, pela fraternidade e pela liberdade, combatíamos a desigualdade e a injustiça, tínhamos ideais generosos e poderosos, acreditávamos num futuro radioso. Ring some bells?… Não muito diferente da tua “experiência da fé”, mas sem Deus na equação.
Enfim, entretanto cresci e não interessa muito o que mudou em mim, nomeadamente no que que respeita ao entendimento do que é ser-se livre, interessa que percebo muito bem o peso das ideias mobilizadoras, da utopias e da esperança. As religiões e as ideologias são precisamente isso, ideias mobilizadoras. Entre outras coisas, geram comunidade, geram união, geram doutrina, geram sentimentos exaltantes e, ao extremo, geram fanatismo. O que é que isso nos diz da qualidade das propostas, da sua veracidade, da sua adequação ao mundo real? Muito pouco ou nada. Não é conhecimento objectivo, é experiência subjectiva ditada por um conjunto de ideias partilhadas por outros.
Absurdo, por outro lado, é concluir que a fé é racional visto existir no quadro de confissões religiosas, isto é, porque é partilhada por outros e é baseada numa narrativa. Muito bem, então não podes considerar imaginário o politeismo olímpico ou a cientologia. Aceita-os também como verdades racionais.
A propósito de tudo isto, e depois de escrever tudo isto, encontrei este artigo que está muito interessante:
http://www.ordemlivre.org/textos/1097
Abraço!
Miguel, este link que atrás partilhei tem conteúdo eminentemente político e talvez possas entender que não tem aqui cabimento. Simplesmente achei interessante, no contexto da nossa conversa, o enquadramento histórico do autor. Mas estás à vontade para apagar se achares impertinente.
Caro J,
Obrigado pelas tuas reflexões. Desculpa-me só responder agora, mas o trabalho tem-se intensificado, bem como a vida familiar.
Quando me refiro ao “sentido” da ciência, estava mais acompanhar as tuas palavras, por si só, a ciência não tem “sentido” nem deixa de ter, é um método de conhecimento. Daí que também não perceba muito bem que tipo de “sentido” é que as religiões poderão dar à ciência.
A ciência como método restringe o seu campo de acção à materialidade, porém, possui uma profunda influência sobre a nossa visão do mundo. Ora, isso tem implicações para quem é crente quando, naturalmente, informa a visão do mundo com base na sua experiência da fé.
A única questão que o “sentido” me suscita é a questão ética ou moral e que se relaciona com a “intenção” do cientista.
Eu concordo contigo, mas acho também que no que diz respeito às questões últimas de sentido (ex. para onde tende o mundo? Porquê estas leis e não outras? (não 'que' leis?) Porque existo? (não como existo?), etc…), são questões onde um diálogo mutuamente criativo entre o conhecimento científico e o saber teológico, através do discurso filosófico, é muito mais fecundo em termos das respostas que se podem obter (sempre abertas e não fechadas sobre si mesmas) do que se ciência e fé fossem consideradas independentes, sem interacção. É verdade que não deduzindo ciência a partir do pensamento religioso que “deixamos a religião fora do laboratório”, mas como a religião é inerente à pessoa humana e essa sim, está no laboratório, também está a religião, sobretudo nas decisões que implicam ética, como afirmaste. Ciência e religião são uma só na pessoa humana, mas mescal métodos é pouco saudável intelectivamente.
Se Darwin ou Galileu, para utilizar os mesmos exemplos, tivessem sido fieis à sua crença religiosa em vez de serem fiéis à liberdade científica na procura da verdade, se não se tivessem enveredado por um pensamento independente, ainda teríamos andado mais uns anos a acreditar em estórias da carochina, perdão, em mitos religiosos.
Eu sustentaria precisamente o contrário. Galileu sabia muito bem distinguir as questões e por isso usou a metáfora dos dois Livros. Darwin duvidou mais da sua crença pela experiência dura da morte de uma das suas filhas, do que propriamente por causa da ciência biológica. Veja-se como ele afirmava que Asa Gray havia compreendido o seu pensamento melhor do que muitos na sua época e como Gray era um Cristão convicto e maduro na fé.
Entre outras, o primeiro conduz a uma verdade subjectiva, o segundo aponta para uma verdade objectiva.
Eu não teria tanta certeza. Sugiro que aprofundes o pensamento de Pannenberg ou Ratzinger.
Por outro lado, a tua visão mais integral é diferente da visão mais integral de um muçulmano.
Não estaria tão certo disso. O muçulmano coloca Deus em primeiro lugar, o Cristão também. O muçulmano encontra a regra de Ouro no Al-Corão, o Cristão encontra-a na Bíblia. O muçulmano vive o amor ao outro como expressão concreta do amor de Deus, também o Cristão. O muçulmano é convidado no Al-Corão a amar reciprocamente, também o Cristão. Se pensarmos bem, no essencial, somos irmãos e o que nos liga é Deus, mas seguimos vias diferentes. A expressão “visão integral” considera todas as dimensões da experiência de vida humana, e inclusivé – atrevo-me a afirmar – as realidades inacessíveis às concepções humanas, pois esgotar a realidade na materialidade, sabe-me a pouco…
Absurdo, por outro lado, é concluir que a fé é racional visto existir no quadro de confissões religiosas, isto é, porque é partilhada por outros e é baseada numa narrativa.
Estou certo que ambos teólogos que atrás sugeri irão contribuir para meditares melhor sobre o assunto.
Por fim, obrigado pela sugestão!
Abraço
Ora cá estamos de volta. Como diz o povo com sabedoria, devagar se vai ao longe. Antes de mais, espero que esteja tudo bem, contigo e com os teus. Adiante.
Pois, também me parece óbvio que a ciência tenha implicações profundas para quem é crente. Sobretudo quando põe em questão, ou melhor, põe a nú, verdades religiosas. Sabemos, porém, que há muita gente impermeável ao conhecimento científico. Um caso paradigmático é o dos chamados criacionistas da terra nova, que acreditam que a vida na terra tem seis mil anos. A esses e a muitos outros crentes, não há ciência que o valha. Estão tão embrenhados na sua “experiência da fé” que nem conseguem ver para os lados. Tu não, tu és um homem de ciência e não acreditas nesses disparates. O main stream católico educado e urbano também consegue ter uma relação mais harmoniosa com a ciência, tal como o budismo, outra crença religiosa que convive particularmente bem com o conhecimento científico, mas não deixam de ser domínios independentes da experiência humana.
A ciência não precisa (como nunca precisou) da religião para se desenvolver, a maior parte parte dos casos, aliás, a religião só atrapalha, reprime ou atrasa; e a religião também não precisa da ciência para ser abraçada pelos crentes, e também aqui, na maior parte dos casos a ciência só atrapalha, ainda quem não reprima nem atrase. Por outro lado, a ciência e religião são uma só na pessoa humana, tal como o serão a religião e a culinária. Um cozinheiro pode ser extremamente devoto e rezar o Pai Nosso a meio de um refogado, mas o que vai determinar a inclusão do tomilho ou de mais ou menos sal é o palato e a experiência, não é a palavra de Deus.
Continuo sem perceber muito bem em que medida é que a religião pode “dar sentido” à ciência, além da dimensão ético-moral. E como a religião não é a única fonte da ética e da moral, nem nisso é imprescindível.
E se compreendo perfeitamente que a ciência persiga respostas para questões como «para onde tende o mundo? Porquê estas leis e não outras?», que são questões que se levantam a qualquer pessoa curiosa, seja ou não crente, já não vejo que tenha particular interesse na pergunta «porque existo?», que será mais do domínio da filosofia ou da teologia.
«Eu sustentaria precisamente o contrário. Galileu sabia muito bem distinguir as questões e por isso usou a metáfora dos dois Livros. Darwin duvidou mais da sua crença pela experiência dura da morte de uma das suas filhas, do que propriamente por causa da ciência biológica. Veja-se como ele afirmava que Asa Gray havia compreendido o seu pensamento melhor do que muitos na sua época e como Gray era um Cristão convicto e maduro na fé.»
Agora fiquei um pouco baralhado. Não percebo esta tua argumentação. Mas pelo que percebo, vejo que concordas comigo afinal; que ambos, Galileu e Darwin, exerciam a sua ciência de forma independente das suas convicções religiosas e que sabiam perfeitamente que são domínios que devem ser separados.
Galileu pagou caro pela independência; e Darwin continuou cristão depois da Origem das Espécies. E então? Em que é que isto significa “precisamente o contrário” do que afirmei?…
Em relação às verdades objectivas da religião, como não tenho nas minhas prioridades de leitura esses autores recomendados, pedia-te o favor de fazeres aqui um pequeno resumo, se te for possível. Explica-me, por exemplo, em que medida é que a Santíssima Trindade ou a Ressureição do putativo Messias católico são, no entender desses autores, verdades objectivas? E esses autores sustentam de facto que a sua fé é racional porque se sustenta em dois mil anos de pensamento e comunhão de ideias?
Talvez o recurso ao islamismo não tenha sido o melhor exemplo, de facto são ambas religiões abrâmicas, monoteistas, têm raízes semitas comuns e há até que diga que o Corão é uma adaptação muçulmana da doutrina cristã. Podia ter dito, por exemplo, que a tua visão integral é diferente da visão integral de um taoista. Assim ficará mais claro.
Por fim, a mim também me sabe a pouco esgotar a realidade na materialidade, mas como não há evidências nenhumas das centenas de explicações religiosas, prefiro abraçar a minha ignorância do que entregar-me à primeira tese transcendente simpática. Formular teorias é relativamente fácil, o bico de obra é prová-las. E as únicas provas que apresentas são ideias de terceiros, reflexões pessoais ou experiências emocionais. Também me sabe a pouco.
Caro J,
«Sobretudo quando põe em questão, ou melhor, põe a nú, verdades religiosas.»
Não sei se diria desta forma, ou diria antes que a ciência põe a nu verdades científicas com implicações religiosas. Uma verdade religiosa está sempre sujeita a interpretação e essa evolui também, não só com desenvolvimentos científicos, mas também no pensamento teológico e filosófico.
…não deixam de ser domínios independentes da experiência humana.
Eu não partilho inteiramente deste pensamento, talvez por uma questão de linguagem e significado. Isto é, o facto de serem domínios independentes, implica que não interagem ou possuem qualquer implicação entre si, o que sabes que não partilho. Por isso, prefiro afirmar que são “distintos”, mas interagem entre si.
A ciência não precisa (como nunca precisou) da religião para se desenvolver, a maior parte parte dos casos, aliás, a religião só atrapalha, reprime ou atrasa;
Seria um erro – penso eu – deduzir ciência a partir do pensamento religioso, até porque isso iria diminuiria esse pensamento, mas é também um erro pensar que a religião atrapalha. Repara, não atrapalhou George Lemaître, Teilhard de Chardin, ou Mendel, ou até Newton, ou muitos hoje em dia como Francis Collins, Francisco Ayala, George Coyne, Guy Consolmagno, Michael Heller, entre outros.
O mesmo para o inverso, porque haverá o crente de ver a ciência como atrapalhação? Muito pelo contrário, através da ciência temos motivos ainda maiores para louvar Deus pela sua Criação. Quanta maravilha, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, nos revelou a ciência e nos permitiu ir em maior profundidade na nossa fé? Imensa …
o que vai determinar a inclusão do tomilho ou de mais ou menos sal é o palato e a experiência, não é a palavra de Deus.
E porque não? Se o cozinhado sair bem ele estará a viver a Palavra de Deus como ninguém porque fez bem o que devia ter feito no momento presente e essa é a forma mais segura de viver a Vontade de Deus, a Sua Palavra.
Continuo sem perceber muito bem em que medida é que a religião pode “dar sentido” à ciência, além da dimensão ético-moral.
A dimensão ético-moral em ciência não é uma qualquer, mas é, aliás, essencial, sem a qual a ciência não pode passar, assegurando que é sempre um “bem” em si mesma. Por isso, se fosse apenas esse o contributo da religião, seria já ENORME, mas eu creio que há outro mais profundo: o sentido último. “Porque existe alguma coisa em vez de nada?” Esta é uma questão à qual a ciência não tem resposta porque não faz parte do seu domínio de investigação, em termos do sentido/significado da existência, muito embora a resposta que a religião dá estimule no cientista o humilde desejo de conhecer. Aliás, esse é um dos grande contributos das religiões Judaica e Cristã: Deus distinto do mundo.
Em suma, o cientista crente aprofunda a sua fé com a ciência que faz porque isso leva-o a uma experiência profunda do Sabath. O cientista não-crente não faz aparentemente essa experiência, mas quando observo casos como o de Francis Collins que se converteu pela ciência que fez no Projecto Genoma Humano, leva-me ao menos a pensar …
Agora fiquei um pouco baralhado. Não percebo esta tua argumentação.
Espero que tenhas ficado mais esclarecido pelo facto de ter diferençiado “independência” e “distinção” neste contexto.
Explica-me, por exemplo, em que medida é que a Santíssima Trindade ou a Ressureição do putativo Messias católico são, no entender desses autores, verdades objectivas? E esses autores sustentam de facto que a sua fé é racional porque se sustenta em dois mil anos de pensamento e comunhão de ideias?
Se não te importares não tenho neste momento espaço ou tempo para explorar estas questões num comentário. Talvez as pudesse abordar num futuro post mais convenientemente.
E as únicas provas que apresentas são ideias de terceiros, reflexões pessoais ou experiências emocionais. Também me sabe a pouco.
Percebo o que dizes. Não chega aquilo que nos é apresentado, mas importa aprofundar estes assuntos, estudando, o que nos ocupa, por vezes, tempo que não temos. Por outro lado, importa fazer uma experiência pessoal, o que nem sempre estamos dispostos. Ou questionar se escutamos a história da fé através das pessoas certas, o que nem sempre acontece. Acho bem que não te entregues à primeira “tese transcendente simpática” que te aparece, mas folgo em saber que duvidas e procuras, não te fechando sobre falsos ou redutíveis absolutos como alguns ateus fazem frequentemente.
Abraço
«Uma verdade religiosa está sempre sujeita a interpretação e essa evolui também, não só com desenvolvimentos científicos, mas também no pensamento teológico e filosófico»
Completamente de acordo. Não seria tão categórico no uso da expressão “evolui”, prefiro “muda” de acordo com a evolução do conhecimento científico, cultural ou empírico do mundo, mas é isso. De resto, essa tua opinão explicará bem porque é que a ciência não põe a nú verdades religiosas. Não o põe pela simples razão de serem verdades dinâmicas, elusivas e transitórias. Isto é, também no mundo religioso (pelo menos no teu) o que é verdade hoje é mentira amanhã, ou vice-versa. Gostei da honestidade.
Dá-me um exemplo concreto de uma situação em que ciência e religião «interagem entre si». E não vale exemplos de cientistas religiosos, até porque todos sabemos que a maioria dos cientistas (eu até arriscaria a esmagadora maioria) não tem crenças religiosas e a ciência tem avançado muito bem sem essa «interacção». Ou seja, são distintos e, por norma, não interagem entre si. Este é o mundo dos factos. Agora, podes dizer: não interagem mas deviam, pois é esse um caminho virtuoso. É uma opinião repeitável, que não partilho. E já te dei alguns exemplos concretos de como essa obsessão dos crentes em trazer a religião para o âmbito científico pode dar péssimos resultados. Resta-nos o plano moral, em relação ao qual a religião (a tua e outras) tem bem menos a dizer do que tu pareces achar. Mas já lá vamos.
«É também um erro pensar que a religião atrapalha. Repara, não atrapalhou George Lemaître, Teilhard de Chardin, ou Mendel, ou até Newton, ou muitos hoje em dia como Francis Collins, Francisco Ayala, George Coyne, Guy Consolmagno, Michael Heller, entre outros»
Pois não, não atrapalha!!! Ó Miguel, não brinques comigo. Da tua área científica não sei nada, mas de história vou percebendo um pouco e branqueamentos comigo não funcionam. Conheço razoavelmente bem a história da tua Igreja. Esses exemplos que dás são a excepção, não são a regra e nem são aliás assim tão pacíficos. Aliás, o exemplo de Teilhard de Chardin é magnífico. Logo esse, a quem a tua Igreja proibiu de dar aulas e recambiou para um exílio perpétuo na China! Mas é claro, até a julgar pela abertura do teu entendimento teológico, devo presumir que o Vaticano, ou pelo menos algumas épocas do Vaticano, não constitui para ti um exemplo das «pessoas certas» para bem perceber o mundo dos crentes católicos. O “amor” da tua Igreja pela ciência é um fenómeno relativamente recente. A liberdade da investigação científica e a explosão do conhecimento científico surgiu na Europa após a imprensa, a renascença e o iluminismo e consequente a independência das instituições universitárias. O ensino uni8versitário medieval estava fossilizado e a principal ocupação das elites intelectuais da tua Ireja era copiar, não inovar. O resto é demagogia doutrinária barata e as igrejas sempre constituiram um travão ao pensamento crítico e á actividade científica. Agora, é claro, algo tem mudado para melhor, claro. Pelo menos no contexto da tua Igreja, mau grado questões onde continua a atrapalhar, como a das células estaminais. Outras há que se mantêm mais obscuras e medievais. O que significa que quando falamos de “religião”, falamos de muitas realidades distintas e não apenas da tua.
«E porque não? Se o cozinhado sair bem ele estará a viver a Palavra de Deus como ninguém porque fez bem o que devia ter feito no momento presente e essa é a forma mais segura de viver a Vontade de Deus, a Sua Palavra.»
Pois claro que sim. E no meu jardim há um gnomo que sai todas as noites do seu buraquinho para apanhar ar fresco.
«A dimensão ético-moral em ciência não é uma qualquer, mas é, aliás, essencial, sem a qual a ciência não pode passar, assegurando que é sempre um “bem” em si mesma»
Até aqui, é debatível mas ok, não é efectivamente “uma qualquer”. A ética na ciência é uma questão relevante. Daí até dizer que a religião tem algum papel nesse capítulo, ou que seja uma relevante fonte de moralidade, é outra discussão interessante e controversa. Por outro lado, a ciência pode eventualmente não ter nada a dizer sobre o porquê de existir algo em vez de nada, admito que seja uma questão eminentemente teológica. Aliás, pensando melhor, até tem, até procura respostas para isso, completamente à margem das propostas religiosas. Já não o terá, isso sim, na questão do tal “sentido da vida”, isso sim, será para outros domínios da especulação humana. Agora, que a(s) resposta(s) da religião constituam um estímulo para que os cientistas humildemente desejem conhecer é que já me parece um argumento demasiado rebuscado da tua parte. Tens a certeza que estimula? E os cientistas ateus? Têm um estímulo menor? São menos curiosos? Ainda mais rebuscada é a noção de isso é assim porque a tradição judaico-cristã desenvolveu a ideia de um «Deus distinto do mundo». Conheço muita gente, de resto, que não a considera um contributo, mas uma tragédia… Fico também sem saber onde encaixar, por exemplo, Einstein, que, sendo essencialmente agnóstico, até tinha uma concepção algo panteísta da vida e do universo, isto é, pensava que, a existir um Deus, não estaria certamente distinto do mundo.
Terás razão quando dizes que o cientista crente aprofunda a sua fé com a ciência, mesmo que a experiência nos diga que a maioria dos cientistas, pelo contrário, abandona a sua fé quando começa a aprofundar a ciência, mas enfim, há sempre o Francis Collins e outras raridades. Mas a minha questão nem é essa. A minha questão é que mesmo o cientista crente quando faz ciência, pelo menos o que podemos designar como boa ciência, faz ciência ponto final. Como diria Darwin, agrupa factos para chegar a conclusões ou leis gerais, tendo como base o mundo natural. Nesse contexto, a única forma de a religião interagir com a ciência é a forma dos seus eventuais limites morais. Como será o caso de um cientista que se recuse a investigar células estaminais. No resto a religião é irrelevante.
E fico a aguardar com ansiedade um post que nos esclareça a natureza objectiva, evidente e racional da Trindade, dos milagres e de outras maravilhas católicas.
Caro J,
Isto é, também no mundo religioso (pelo menos no teu) o que é verdade hoje é mentira amanhã, ou vice-versa. Gostei da honestidade.
Não sei se colocaria a minha honestidade dessa forma, isto é, no ser mentira ou verdade porque a verdade é uma só e tanto o mundo religioso, como o não-religioso procura a verdade. O que eu diria é que a verdade hoje é menos clara que a verdade de amanhã 🙂
Ou seja, são distintos e, por norma, não interagem entre si.
O facto de distintos é precisamente o que permite interagirem entre si. Parece-me que o problema no que dizes é o aforismo filosófico de toma “distinção” por “separação”. Não são a mesma coisa. Se não fossem distintos seriam o mesmo, numa espécie de concordismo (como na teologia natural, diferente da teologia da natureza). Na teologia da natureza podes encontrar inúmero exemplos da interacção entre ciência e fé: Criação e Evolução, Contingência e Acaso, Inteligibilidade e Conhecimento, entre outros.
O “amor” da tua Igreja pela ciência é um fenómeno relativamente recente.
Lamento, mas já em Santo Agostinho encontras esse amor e ele não me parece muito recente – por assim dizer …
O ensino uni8versitário medieval estava fossilizado e a principal ocupação das elites intelectuais da tua Ireja era copiar, não inovar.
Se a Igreja não inovou, mas copiou, podias dar-me exemplos de quem na Idade Medieval inovou?
O resto é demagogia doutrinária barata e as igrejas sempre constituiram um travão ao pensamento crítico e á actividade científica.
Não me identifico com o que dizes e são muitos que também não se identificam. Penso que estás a tomar a parte pelo todo …
mau grado questões onde continua a atrapalhar, como a das células estaminais.
Já me pronunciei sobre isso no meu livro. Os últimos desenvolvimentos com células estaminais adultas resolveram o dilema ético, tal como tinha previsto 🙂
Pois claro que sim. E no meu jardim há um gnomo que sai todas as noites do seu buraquinho para apanhar ar fresco.
Dei-te um tesouro e passou-te ao lado …
Agora, que a(s) resposta(s) da religião constituam um estímulo para que os cientistas humildemente desejem conhecer é que já me parece um argumento demasiado rebuscado da tua parte. Tens a certeza que estimula? E os cientistas ateus? Têm um estímulo menor? São menos curiosos?
Não percebo porque consideras rebuscado. Sim, tenho a certeza que estimula, mas não me parece correcto confundir ciência com ateísmo. Um crente faz tanta e tão boa ciência como um não-crente, o que pergunto é: qual o sentido que tem a ciência que faz para um não-crente? Verás que a resposta é a mesma de um crente: chegar à verdade. Contudo, a fé, ao estimular o humilde desejo de conhecer, implica a demonstração do mito apregoado de conflito entre ciência e fé.
Terás razão quando dizes que o cientista crente aprofunda a sua fé com a ciência, mesmo que a experiência nos diga que a maioria dos cientistas, pelo contrário, abandona a sua fé quando começa a aprofundar a ciência,
Isso apenas demonstra a rejeição de “um” teísmo, perdendo a oportunidade de o aprofundar. Não há soluções fáceis para questões complexas como a experiência de Deus. O que tenho verificado é que aqueles que abandonam a fé o fazem por querem manter-se na superficialidade com que a viviam, sem aprofundar o património vastíssimo de pensamento teológico. Ele está à mão de semear, mas pouco estendem a mão para apanhar as sementes. É preciso estudo, leitura, confrontar com os outros. Uma mera intuição leva a uma crença superficial e pode levar a uma descrença nos mesmos termos.
O facto do cientista fazer ciência e ponto final é verdade, mas isso não implica necessariamente a rejeição da experiência religiosa. Essa é feita sempre com base em pressupostos filosóficos. É lícito? Sem dúvida. Mas é em todos explícito? Nem sempre. Se alguém ao falar-me dissesse: sou positivista, eu compreenderia o seu discurso de uma forma completamente diferente do que se não dissesse, pois não dizendo, cairia na falácia comum de fazer afirmações que, no fundo, são falsos absolutos.
Por fim, obrigado pelo repto. Vejamos quando consigo tempo para o fazer 🙂 Para já, permite-me recomendar-te “A Trindade – Modelo Social” de Enrique Cambón da editora Cidade Nova. Fala da Trindade vivida no concreto, o que por vezes ajuda a perceber melhor a sua natureza objectiva, evidente e racional …
Abraço
«Se a Igreja não inovou, mas copiou, podias dar-me exemplos de quem na Idade Medieval inovou?»
De facto é terrivelmente difícil dar exemplos… Porque é que será? Ora deixa-me cá pensar… Porque é que é difícil, sendo o período medieval tão abundante em inovação e progresso?…
Miguel, também ando a par de um certo movimento de reabilitação histórica da Igreja Católica e do seu papel perante a ciência ou o progresso social e das mentalidades, mas isso não me impressiona muito e não há casos excepcionais que dês que apaguem a realidade do passado e uma leitura mais abrangente do mesmo. E essa não é muito risonha.
A tua Igreja, depois de Constantino e da queda do império romano do ocidente, ocupou um espaço vazio na Europa e secou tudo à sua volta, a bem ou a mal, monopolizando as áreas do saber, do pensamento e das artes – sem falar da área espiritual, arrasando todos os cultos endógenos ou alternativos, mas enfim, isso para mim não será tão dramático como é para outros – com o feliz beneplácito/submissão do poder temporal. Mil anos, Miguel, mil anos de monopólio, mil anos de pensamento único, mais de mil anos de repressão e perseguição a todo o pensamento e criação divergente com a doutrina ultra-conservadora e amiúde fanática da ubíqua Santa Sé. Mil anos de obsessão com heresias. As excepções, como Santo Agostinho, que teve um papel muito importante, por exemplo, na questão do literalismo bíblico e da evolução da tua Igreja nesse capítulo fundamental (conseguindo o feito intelectual de conciliar as Escrituras com a realidade, e não o contrário, como faz o islamismo), mas dizia eu que as excepções não fazem a regra. A verdadeira abertura da Igreja Católica à ciência é um fenómeno que acompanha sobretudo o século XX e as revoluções sócio-culturais e políticas.
Para trás, a Igreja Católica sempre foi estruturalmente um obstáculo à criação e à disseminação do conhecimento, tanto que a explosão de literacia coincidiu com a secularização das sociedades. Onde a igreja era dominante era dominante o pensamento teológico. E se houve movimentos mais esclarecidos, ao longo da história, que tenham rompido com o imobilismo natural da sua Igreja é só uma prova que não há sistema repressivo capaz de estancar o fluxo imparável da inteligência e da curiosidade humanas. E a tua igreja, para sobreviver, teve de se adaptar e evoluir. E nesse sentido, quanto a mim, fez o processo histórico inverso ao do mundo muçulmano, que passou de uma relativa abertura à ciência e à inovação para uma situação de imperativo teológico e de paralisia cultural, a mesma paralisia que, salvo excepções e solavancos, dominou a idade média europeia.
E atenção, digo isto reconhecendo o monumental e preciosissímo esforço que a tua Igreja teve ao moldar o pensamento europeu e não só, principalmente copiando e preservando os clássicos, pelo menos os mais interessantes aos olhos dos líderes. O index não é uma ficção, assim como não são Hipatia de alAxandria ou Giordano Bruno. A copiar, de facto, tiveram grande mérito.
Mas também acrescento que hoje em dia a tua Igreja é das mais progressistas e moderadas, é uma igreja minimamente arejada porque evoluiu, quanto a mim a reboque de dinâmicas mais poderosas, mas mantém o mérito. E isso é bom. Antes isso que o protestantismo evangélico norte-americano ou o radicalismo de algumas correntes católicas.
Em relação ao resto, dá-me ideia que chegámos mais ou menos a um impasse. Temos formas diferentes de olhar para o mundo, percebemo-lo de formas diferentes e chegamos a diferentes conclusões. Não deixo de me espantar com o mistério, mas também não deixo de me espantar com a fidelidade dos outros a ideias antigas que foram sendo aprimoradas ao longo do tempo e que são vividas como verdades profundas. Ora a minha verdade profunda é a dúvida. Não consigo aceitar a mitologia cristã tanto quanto não consigo aceitar o gnomo no buraquinho.
As respostas religiosas têm importância, dão sentido e conforto à vida, apontam caminhos de felicidade e conciliação com a morte, mas são péssimas, quanto a mim, na explicação do mundo. Isto é, consigo relacionar-me de forma positiva com a chamada mensagem de Cristo, já não o consigo fazer com a Virgem Maria, a Trindade (por muito que a tentem racionalizar), o Inferno, os anjos, os milagres, só para falar dos mitos mais recentes e sem falar em todo o vastíssimo rol de maravilhas bíblicas, mais antigas, ou a carrada de superstição popular obscurantista que a religião arrasta sempre consigo e muitas vezes estimula. Relaciono-me com isso da mesma forma como me relaciono com qualquer outra ficção, produtos da imaginação humana.
Que as ideias são poderosas? Sem dúvida, tu és a prova viva disso mesmo: acreditas. Eu não. Por isso nem vejo sequer pertinência num qualquer tipo de ligação entre ciência e religião. A não ser que a religião interfira no plano moral; ou que a ciência analise reivindicações religiosas. De resto, não vejo como nem porquê.
«O que tenho verificado é que aqueles que abandonam a fé o fazem por querem manter-se na superficialidade com que a viviam»
Essa arrogância é que não te fica nada bem.
Caro J,
sobre a questão da inovação medieval, creio que a unidade entre pensamento teológico e científico era maior que actualmente e se pensares nos mercados e no desenvolvimento das universidades verificas que é nesse quadro, não num quadro de ateísmo, que se desenvolve a ciência e a tecnologia. Logo, ainda gostava de ver a prova de que a Igreja foi um obstáculo à criação e disseminação de conhecimento. Ao pensarmos em Hipácia, Galileu, Giordano Bruno, sugiro-te este comentário do P. Barron sobre o filme Agora. Por outro lado, sei que não sou a pessoa mais informada sobre a História da Ciência, mas, posso consultar um amigo meu especializado nessa matéria para poder melhor responder-te.
Queria reter-me na acusação que me fazes de “arrogância”. Quanto afirmo o que tenho verificado, é o que me testemunham aqueles que deixam a fé e com quem dialogo para tentar perceber porque a rejeitam agora e não rejeitavam antes. Nesse sentido, o que alguns “agora” ateus me testemunham sobre o que pensavam antes quando tinham fé, permitem-me verificar que as dúvidas que lhes surgiram foram mais incutidas por terem aceite uma visão mais superficial das questões religiosas, do que provenientes do seu aprofundamento.
Neste post, quando cito Rahner e o que ele disse há 40 anos, faço-o na profunda admiração pela actualidade do que ele afirma quando confronto com o testemunho deste meus amigos ateus. Logo, será isto arrogância? Repara, sem incluir-te nesse grupo, porque não te conheço o suficiente, se na Bíblia o que lês é um rol de maravilhas, superstição obscurantista, então, manténs-te na superficialidade da sua mensagem e, por isso, a realidade experiencial por detrás de Maria, a Trindade, entre outros é-te inacessível pela barreira de pensamento e experiencial que te impões a ti próprio.
Costumo medir bem as palavras que uso, nem sempre consigo, mas daí à acusação de “arrogância” parece-me um passo a dar com cuidado, não achas? Mediste bem as palavras quando pensaste em arrogância relativamente ao que eu disse?
Abraço
Caro J,
uma adenda ao comentário anterior. Esse secularismo e os valores que o informaram vêm de onde? Dos ideais ateus? Se for esse o caso, gostava que me esclarecesses, porque me parece que os ideais secularistas, ou o próprio ateísmo, como escrevi aqui possuem uma origem bíblica.
Abraço
«Creio que a unidade entre pensamento teológico e científico era maior que actualmente», sem dúvida, dominava o imperativo teológico, como já o sublinhei no meu comentário anterior. A questão principal, no entanto, é a do «desenvolvimento». E o que nos mostra a história, é que esse desenvolvimento foi mais uma espécie de impasse com alguns solavancos pontuais para a frente. Que sucedeu ao florescimento clássico, sobretudo grego, e antecedeu a Renascença e o início da laicização da sociedade (fase a que nem por acaso, os historiadores apelidam de “revolução científica”), que progrediu a par da imprensa, da reforma protestante e da expansão ultramarina das nações europeias. O desenvolvimento científico medieval foi mínimo e as universidades que iam abrindo a partir do século XII tinham muito pouco a ver com a actual universidade. Não eram propriamente espaços livres de saber e investigação, eram espaços subjugados ao pensamento escolástico, dogmático, baseado nas Escrituras católicas e nas leituras canónicas de Aristóteles. Eram espaços censurados, onde qualquer inovação ou diferença era zelosamente perseguida pela polícia herética.
Foram instituições fundamentais pelas sementes que lançaram e a tua Igreja teve nisso um papel crucial, sem dúvida, mas foi um processo lentíssimo, já nem falo desde o início da idade média, mas desde Agostinho e o regresso dos pré-socráticos, até ao florescimento académico e científico que descolou precisamente no final da Idade Média, que coincide com o início do declínio do pensamento teológico dominante e com a redescoberta, por via dos árabes e da queda de Constantinopla, dos clássicos não-canónicos, digamos assim. Por isso se chama Moderna à era seguinte, que começou a mover-se mais rapidamente.
O desenvolvimento científico e intelectual medieval não era estático, mas era fortemente condicionado e espartilhado por quem detinha o monopólio do saber, uma instituição centralista e conservadora chamada Igreja Católica. O caso das ciências naturais, supostamente estimuladas pela Igreja a partir de certa altura, são um exemplo paradigmático do baixíssimo nível de desenvolvimento que atravessou o longo período medieval, da medicina à astronomia, a evolução foi lentíssima e de uma forma geral perpetuava-se sem grande questionamento conhecimento antigo, de Hipócrates de Galeno ou de Ptolomeu. A prioridade da Igreja, não era propriamente essa, mas antes as questões da fé e da doutrina. Por vezes surgiam umas luminárias, como Bacon, ma não era essa a dinâmica dominante. Em suma, não estava parado, mas quase.
Vi o testemunho do P. Barron. Sobre ateus, cada um que fale por si, também não aprecio generalizações. O P. Barron é uma pessoa que fica bem na televisão e tem um discurso fluente. O P. Barron aponta algumas discrepâncias na história de Hipatia (talvez os cristãos não sejam assim tão culpados neste episódio, diz ele) e depois não diz mais nada de relevante, procura passar uma visão simpática e auto-vitimizadora da sua igreja e cala-se sobre Giordano Bruno, sobre Galileu, a inquisição, o index, as perseguições e as chacinas e tudo o resto. Em suma, pouco mais do que propaganda.
Quanto aos «mercados», não tenho a certeza de saber a que te referes, mas talvez seja ao crescimento da burguesia mercantil que se ía espalhando pela Europa, com epicentro na Itália. Trata-se de matéria económica e de desenvolvimento das cidades e não vejo, sinceramente, grande ligação, seja ao tema que falávamos, seja entre a Igreja católica e esse processo. Participou, mas não penso que tenha tido um papel relevante.
Miguel, não era minha intenção ofender-te, tem sido uma conversa cordial e assim gostaria que se mantivesse. E quando quiseres que não se mantenha, é só dares um sinal, que eu respeito e passamos para cenas de próximos capítulos. Peço desculpa se ofendi, mas pareceu-me efectivamente uma afirmação arriscada. Tal como na questão dos ateus, cada um que fale por si e cada um terá as suas razões, mais ou menos profundas, para não adoptar uma crença religiosa.
Não sei se todos os ateus aprofundaram suficientemente o budismo antes de concluírem que este não era uma resposta viável e satisfatória para as suas vidas. Não sei se todos os fizeram em relação a todas as outras doutrinas. Não sei o nível de superficialidade com que cada um toma as suas decisões ou faz as suas reflexões. O que não me parece correcto é fazer essa leitura. Inquietude, claro, perante a ausência de Deus e perante o que a ideia de Deus faz aos homens, perante o silêncio e o mistério. Mas cada um que fale por si. Eu, na minha limitada inteligência, procuro aprofundar, leio livros, ouço conferências, leio-te a ti, sigo as tuas pistas e leio Rahner, ouço grandes pensadores da tua Igreja, leio teólogos e faço análises comparadas ou não com outras tradições, tento experimentar o sentimento religioso, mas confesso que nada disso tem resultado. Aliás, estou é cada vez mais céptico. Se isso não é aprofundar, não sei.
Eu na Bíblia leio o que lá está, leio o que leêm leitores mais esclarecidos e progressistas como tu, Anselmo Borges ou Bento Domingues, leio o que leêm leitores menos progressistas e menos agostinianos e leio até o que leêm leitores mais literalistas do que a própria literalidade… Já te disse, acho que várias vezes, que acompanho minimamente a evolução da tua Igreja no aspecto do literalismo bíblico, não estou a falar de cor nem estou a ser superfícial. A realidade é que a Bíblia dá para todas as leituras e para justificar a bota e a perdigota. Mitos e lendas, maravilhas e horrores, parábolas e relatos históricos, essa é a parte aberta à interpretação, interpretação essa que muda com os tempos e com as vontades. Por im, também procuro ler entre as linhas, como mandam e explicam os sábios da tua Igreja. Depois há os dogmas da tua Igreja (Maria, a Trindade. etc.), que por natureza não mudam. Ou mudam menos. E depois há a superstição popular obscurantista, que gira muito em torno da dimensão miraculosa e mágica da religião, os santos e os demónios, as lendas, as tradições e a iconografia. São fenómenos diferentes.
«Esse secularismo e os valores que o informaram vêm de onde?». Até podemos elaborar também sobre isso se quiseres, mas esta resposta já vai longa. Mas resumidamente é mais ou menos assim: os ideias secularistas até podem ter uma «origem bíblica» (vou ler o teu post e já vejo o que tens para dizer sobre isso), podem ter vindo do céu aos trambolhões ou de uma simples aspiração a liberdade, nem sei bem o que é isso dos ideais ateus, mas uma coisa é certa: quando vieram, a tua Igreja não gostou. Depois, quando já era irreversível, não teve outro remédio senão passar a gostar. Mas durante muitos séculos foi uma valente dor de cabeça.
ah, e um abraço!
Entretanto, deambulando por outras leituras, dei de caras com esta passagem, que não resisto a trazer para esta conversa, como ilustração da forma como a Igreja Católica funcionava noutros tempos.
Trata-se de um excerto de uma carta do cardeal Roberto Bellarmino, um dos grandes Doutores da tua Igreja, escrita em 1615 (1615, já não é propriamente a Idade Média), a Paolo Antonio Foscarini, que tentava demonstrar que o heliocentrismo de Copérnico ( era compatível com a doutrina do Vaticano (peço desculpa por não ter tempo para traduzir: «As you are aware, the Council of Trent forbids the interpretation of the Scriptures in a way contrary to the common opinion of the holy Fathers. Now if you will read, not merely the Fathers, but modern commentators on Genesis, the Psalms, Ecclesiastes, and Joshua, you will discover that all agree in interpreting them literally as teaching that the Sun is in the heavens and revolves round the Earth with immense speed, and that the Earth is very distant from the heavens, at the centre of the universe, and motionless. Consider then, in your prudence, whether the Church can tolerate that the Scriptures should be interpreted in a manner contrary to that of the holy Fathers and of all modern commentators, both Latin and Greek».
Isto foi quinze anos antes de Bruno morrer na fogueira em Roma por defender precisamente a tese de Copérnico, quatro anos antes de Vanini arder em Toulouse pelas mesmas razões e cerca de dez anos antes de Galileu ter de aceitar que a terra não se mexe e está no centro do universo para não ter o mesmo destino. Pelo meio, a obra de Copérnico entrou direitinha no index dos livros proibídos, onde se manteve até já não haver alternativa senão aceitar a realidade.
Caro J,
alguns comentários breves num período de melhora de uma gastroentrite que colocou 90% da família cá em casa de “quarentena” …
Na própria wikipedia é claro que «Ao contrário do que se pensa comumente, Giordano Bruno não foi queimado na fogueira por defender o heliocentrismo de Copérnico.»
Não encontrei qualquer motivo de acusação em Vanini que envolvesse questões de ciência vs religião, mas antes que ele foi (erradamente) morto por ideias anti-Cristãs, não pró-científicas.
O caso de Galileo foi abordado exautivamente, como podes ver nesta notícia, revelando na obra noticiada em particular como essa contenda faz parte do mito de conflito entre ciência e religião que se insiste atribuir à Igreja Católica.
Quanto à tua análise histórica, parece-me que está francamente enviesada, bastando considerar especialistas em história de ciência. Eis alguns exemplos:
«The single most important contributor to the support of the study of physics in the seventeenth century was the Catholic Church and, within it, the Society of Jesus»,
J. L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries. A Study in Early Modern Physics (Berkeley: University of California Press, 1979;
depois: New York: Dover, 1999), p. 2.
«The Roman Catholic Church gave more financial and social support to the study of astronomy for over six centuries, from the recovery of ancient learning during the late Middle Ages into the Enlightenment,
than any other, and, probably, all other, institutions…. During the sixteenth and seventeenth centuries the Catholic Church supported a great many cultivators of science. A systematic study of the niches they occupied, the infrastructure they moved through, and the roles
they fulfilled does not exist. The courts and households of the big ecclesiastical patrons, the popes and cardinals, afforded many openings for the learned. The great orders, especially the Jesuits,
supported some of their brethren as writers, mathematicians, architects and engineers”.
J. L. Heilbron, The Sun in the Church. Cathedrals as Solar Observatories (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999), pp. 3 e 21-22.
Sugiro que estudes um pouco mais sobre este assunto para estares mais informado, começando por esta obra: David Lindberg and Ronald L. Numbers (Eds.) God and Nature. Historical Essays on the Encounter between Christianity and Science (Berkeley: University of California Press, 1986).
Abraço
Miguel, antes de mais, as melhoras para ti e para os teus, espero que já esteja tudo restabelecido.
E agradeço o conselho final. Conto, de facto, continuar a estudar mais sobre este e outros assuntos. Obrigado pelas sugestões de leitura.
Memória histórica enviesada? Pois, talvez, enfim, não sei tudo e admito que me engane. Mas gostei da subtileza do argumento: «Ao contrário do que se pensa comumente, Giordano Bruno não foi queimado na fogueira por defender o heliocentrismo de Copérnico». Como é que eu não me tinha lembrado disto?! Realmente, assim tudo muda de figura… Pois, o Bruno afinal não foi queimado por causa do heliocentrismo! Isso sim, seria grave! Miguel, eu não me estava a referir às causas específicas das condenações (destas e de milhares de outras), estava a dar exemplos de como era o ambiente cultural e científico da época (idade média) e a repressão geral do pensamento livre. Vanini combatia sobretudo o sistema escolástico e dogmático e apresentava ideias alternativas sobre a vida e sobre o universo. E Bruno tinha ideias diferentes acerca de vida e do universo. Isto é, foram executados por delito de pensamento. E o pensamento livre é a condição essencial da ciência. Por isso é que a ciência se movia muito, mas muito, devagarinho naqueles tempos.
Do que tratamos aqui não é tanto da questão religião vs ciência (tudo era religião nesses tempos teocráticos em que tudo é religião), mas sim da repressão ao desenvolvimento da própria dinâmica científica e da repressão de outras formas de perceber o mundo.
A dinâmica científica começou a acelerar no final da idade média, pelas razões que já te expliquei. Sendo que a partir do século XVI já a Igreja começava, de facto, a acompanhar o ar dos tempos (ainda que de forma extremamente conservadora), daí que o citado Heilbron afirme a importância da Igreja a partir precisamente daquela altura em disciplinas como a física ou a astronomia (que já não é idade média). A partir de uma altura em que na Europa se começava de facto a arejar as ideias. Não por via do esforço progressista da tua Igreja, mas sim por factores seculares como os já referidos imprensa, expansão ultramarina, reforma protestante, etc. Com o surgimento do iluminismo, da Revolução Francesa e Americana, dos ideais seculares, aí sim, explodiu a ciência e rebentou a barragem. Uma barragem (con furos, reconheça-se) chamada Igreja Católica. Pensar que a Igreja Católica tenha sido sempre um farol de desenvolvimento científico é que me parece manifestamente enviesado.
Lembro-te que a Inquisição existiu até ao séc. XIX e que o index existiu pelo menos até meados do século XX. E isto não são pormenores de somenos, não os podes relativizar ou menosprezar, visto traduzirem a corrente dominante da tua Igreja e da Santa Sé, para quem, conhecimento bom, só o conhecimento avalizado pela Doutrina. Isto é, mesmo a pouca investigação ou criação promovida pelos jesuitas nos seus conventos, era extremamente condicionada. E atenção que não estamos já a falar da Idade Média.
Um abraço!
Correcção: é claro que a reforma protestante dificilmente pode ser considerado factor secular. mas foi um factor preponderante na mudança de mentalidades.
Já agora só uma pequena adenda. Quando Heilbron afirma que «The Roman Catholic Church gave more financial and social support to the study of astronomy for over six centuries, from the recovery of ancient learning during the late Middle Ages into the Enlightenment, than any other, and, probably, all other, institutions», convém perceber que não existiam pura e simplesmente mais nenhumas instituições. Talvez este dado ajude a colocar as coisas em perspectiva. Mais tarde, no final da Idade Média, começaram de facto a surgir particulares abastados que patrocinavam artistas e pensadores, mas em termos de instituições de saber e cultura, propriamente ditas, de facto a Igreja Católica, o Grande Eucalipto, durante séculos reinou sozinha e omnipotente. Nesse sentido, foi de facto mais importante «than all other institutions»…
Caro J,
Permita que indique alguns factos históricos.
As invasões europeias das Américas iniciou essa revolução da re-descoberta da astronomia.
Os Maias, os Incas, tinham um conhecimento muito grande sobre a astronomia com capacidade de previsão dos eclipses, das estações do ano, etc…
Não se esqueça que a toda poderosa sociedade “ocidental” alterou o calendário Juliano para o Calendário Gregóriano depois de conhecer estas culturas. Alterou não só o calendário como a passagem do ano.
Cumprimentos,
Relativamente ao heliocentrismo e geocentrismo.
Penso que as duas interpretações são possíveis e incorrectas.
Matematicamente o modelo mais simples do sistema planetário é o heliocentrismo.
Mas para a interpretação do que vemos não é esse o modelo mais relevante.
O modelo em que o centro é o local onde se está na terra, o Sol gira em torno da terra e os outros planetas giram em torno do sol é um modelo que diria de gnostocêntrico.
Se a pessoa ou o instrumento estiver na Lua, deve usar um modelo gnostocêntrico. O local onde está na lua é o centro a Terra gira em torno da Lua o Sol gira em Torno da Terra e os outros planetas giram em torno do Sol…
Sabiam que perdemos 10 dias na passagem do calendário Juliano para o Gregoriano? 10 dias que se apagaram no calendário… um relógio diferente do outro em 10 dias…
Caro anónimo, obrigado pelos factos históricos. Cumprimentos.
Caro Miguel,
É interessante como o toda poderosa Igreja “dententora da verdade” se transformou após o genocídio das culturas americanas, Incas, etc.
Ficou tão confusa com os povos imaculados que encontrou que achou intolerável homens e mulheres surfarem as ondas em cascas de árvores todos nús…
Ficou tão confusa que levou vários anos a perceber a matemática que usavam e o conhecimento astronómico que tinham… tanto que os primeiros a falar sobre heliocentrismo foram ouvidos mas os seguintes foram perseguidos…
Claro que moldou o conhecimento e o calendário à sua imagem e semelhança e mastigou as culturas na sua “toda poderosa”.
Cumprimentos,
Caro Anónimo,
como chegaste às conclusão que a Igreja Católica se considera ou considerou “toda poderosa”?
Abraço
Caro Miguel,
Alterar a passagem de ano na Europa…
Mudar o calendário usado na Europa…
Se não se considera, já se considerou…
Mas quem tenta evitar o uso do preservativo, na África… parece que ainda ficou o gostinho…
Cumprimentos,
Caro Anónimo,
Alterar calendário não é sinal de que a Igreja seja “toda poderosa”, mas antes uma questão cultural.
Quanto ao uso do preservativo, sabe o pensamento da Igreja sobre isso?
Abraço
Caro Miguel,
Terei todo o gosto em saber a sua percepção da opinião da igreja sobre o preservativo…
Não é proibido?
Cumprimentos,
Caro Anónimo,
a minha percepção é que não se pode entender o que a Igreja pensa sobre o preservativo sem saber o que a Igreja pensa sobre a sexualidade na sua totalidade, e não reduzida à genitalidade. Sugiro que te informes sobre a Teologia do Corpo desenvolvida por João Paulo II durante 4 anos nas suas catequeses das audiências de quarta-feira.
Existem duas excelentes publicações em português:
– “Teologia do Corpo para principiantes” de Cristopher West, Paulinas editora (2009);
– “A sexualidade segundo João Paulo II” de Yves Semen, Principia editora (2006).
Sabes, podia-te dizer 'mundos e fundos', mas sem conheceres a forma como a Igreja vive a linguagem do corpo como forma de conhecer e aprofundar a sua relação com Deus, a questão do preservativo será sempre um mal-entendido.
Talvez esteja a pedir-te um passo grande ao sugerir a leitura destas obras, mas acredita que o faço pensando em ti.
Abraço
Caro Miguel,
Muito obrigado pelas referências.
Mas parece ser algo de muito complexo, uma vez que nem o Doutor Miguel consegue em poucas palavras apresentar tal lavagem cerebral…
A sexualidade e o corpo fazem parte da natureza e o comportamento paradoxal da igreja sobre o assunto é aterrador. Por um lado o pecado sem o casamento, quando o comportatmento canónico é muito simples, feliz, natural, basta olhar para dois adolecestes apaixonados.
Paradoxalmente acha que o planeamento familiar e protecção de doenças deve ser proibido…
Por muita lavagem cerebral que tente fazer… a fotografia é muito simples:
1 – Pecado antes do casamento de algo que é natural.
2 – Tentativa de impedir uma forma legítima de planeamento familiar e protecção de doenças.
cumprimentos,
Caro Anónimo,
é precisamente pela expressão “lavagem cerebral” que muitas pessoas entendem muito pouco do pensamento da Igreja sobre a sexualidade. Sinto que se te dissesse alguma coisa irias entender com essa chave de leitura muito pouco real.
Assim, apenas posso questionar-te: não tens o mínimo de curiosidade do resultado de questionares as tuas convicções sobre o pensamento da Igreja?
Abraço…
Caro Miguel,
Mas é mesmo isso que estou a fazer…
E a imagem da igreja cada vez é mais negra e austera como Roma, que depois de matar cristo tomou de assalto a “religião”. Que depois da Roma oriental aprendeu um poder maior do que o da espada. Infelizmente, com muito pouco benefício da população e muito para a “igreja”…
Cumprimentos,
Caro Anónimo,
não percebi.
Abraço
Caro Miguel,
Perguntou se:
“não tens o mínimo de curiosidade do resultado de questionares as tuas convicções sobre o pensamento da Igreja?”
A resposta foi:
“Mas é mesmo isso que estou a fazer…”
Sobre a minha visão da igreja…
realmente podes não perceber…
Roma dividiu o império em duas partes. A parte ocidental e a parte oriental. E a parte oriental…constantinopola…
suficiente?
Cumprimentos,
Caro Anónimo,
continuo a não perceber como questionas as tuas convicções.
A imagem que aparentas ter da Igreja Católica parece algo ultrapassada. Decerto que houve erros no passado e haverá no futuro, porque nem sempre somos radicais na escolha que afirmamos ter feito por seguir Cristo. A Igreja não tem receio de afirmar quando erra e pedir perdão (como fez quanto à Inquisição e ao caso Galileu).
Também não percebi a relação entre o cisma e a questão do preservativo.
Abraço
Caro Miguel,
Coloco à prova as minhas interpretações com quem apresenta vontade de defender as interpretações próprias. Mas peço provas e não aceito argumentos de ilusões para continuar a financiar uma estrutura social de moralidade duvidosa.
Que cisma?
Sobre o preservativo é muito claro que é imoral a sua proibição.
Só quem considera que tem a população sobre controlo é que se pode arrogar tal pretensão…
Mais, cada pessoa infectada com o HIV devia colocar o papa em tribunal pela proibição do preservativo.
Proibir uma ferramenta de protecção física de uma doença devia ser considerado CRIMINOSO!
Pode proibir à vontade, a promiscuidade, as relações sexuais fora do casamento, o que quiser ao nível do comportamento. O uso de uma ferramenta com utilidade mesmo entre um casal… é um erro!
Cumprimentos,
Caro Miguel,
Sabe porque apareceu o monoteísmo?
O mesmo se passa hoje. A estrutura associada ao clero tem de ser revista…
Cumprimentos,
Caro Anónimo,
a Igreja é clara no seu pensamento: ver aqui.
Esse pensamento vem, sobretudo, da experiência de uma infinidade de famílias que dão testemunho de que a sexualidade não se deve reduzir a genitalidade e não de alguém que se considera “todo-poderoso” relativamente a questões morais. Podes pensá-lo, mas asseguro-te estares iludido.
Se uma pessoa pensa que o preservativo resolve a questão da SIDA está redondamente enganado. A resolução não passa pelo físico, mas pelo comportamental, pelo cultural. Ontem vi um programa da Catarina Furtado sobre as mulheres grávidas na Guiné. A um dado momento evidenciava-se o facto de as pessoas escutarem mais os lideres religiosos que os médicos, sobretudo quando são os maridos os detentores “supremos” das decisões. É verdade que a religião que estamos a falar é maioritariamente muçulmana, mas sem o trabalho com as famílias, o que se faz é sempre pouco porque se age nas consequências e não se chega suficientemente longe nas causas.
Santo Agostinho diz “ama e faz o quiseres”, daí a importância de conhecer mais o pensamento sobre o que é o amor conjugal do ponto de vista da Igreja Católica (como na teologia do corpo, por exemplo) antes de viver com opiniões sem fundamento, realismo ou irracionais mesmo, como me parece teres.
O desafio que te lanço, e do qual tens receio, é: vai a fundo nas questões. Não te contente com a opinião meramente superficial, como se estivesse a consumir ilusões sobre o pensamento da Igreja sobre a sexualidade. Aprofunda a verdade e não tenha medo da verdade porque é a verdade que nos tornará pessoas verdadeiramente livres.
Abraço
Caro Miguel,
Muito obrigado pela referência da igreja sobre o preservativo.
Nada diz sobre infecções por transmissão não sexual e o comportamento de um casal nessa situação.
Cumprimentos,
Caro Anónimo,
talvez por não ser esse o argumento, ou por ser muito específico deixando, por isso, de ser aquele o espaço adequado.
Estou certo que investigando um pouco mais pelos documentos disponibilizados no site do Vaticano, sobretudo, pela Academia Pontifícia para a Vida, que encontrarás mais.
Contudo, não posso deixar por comentar a humildade e interesse, Anónimo, que tens demonstrado. Parece-me teres aquele “algo mais” que te permite, ao teu ritmo, ir esclarecendo o teu pensamento e estimulando os outros a esclarecerem também o seu. Bem hajas 🙂
Abraço
Caro Miguel,
O Doutor é que está de parabéns pela elevação, paciência e inteligência com que responde a tantas perguntas.
Cordiais saudações,