Aquando da última obra de José Saramago, “Caim”, não fomos surpreendidos pela inovação e criatividade literárias marcando a actualidade de um Nobel da Literatura, mas sim pela suas declarações acerca da opinião que tem sobre a Bíblia. No fundo, fomos confrontados com alguém ateu que leva a Bíblia à letra, tanto quanto aqueles que levam à letra o facto de Deus ter criado o universo em 6 dias (criacionistas). Ambos se encontram no mesmo patamar:ainda não encontraram o valor da metáfora dos dois livros (Natureza e Escritura) com o mesmo Autor, Deus-Amor.

É sobre esta frutificante relação que John Polkinghorne publicou recentemente um artigo na Science & Christian Belief (vol. 21, pp. 163-173, 2009) que explora a interpretação bíblica à luz do conhecimento moderno que vamos desenvolvendo sobre uma Criação que evolui. Exploremos as respostas que se podem encontrar neste artigo.

Os Cristãos sempre foram literalistas bíblicos?
Poderíamos até pensá-lo afirmando que o próprio Santo Agostinho fez um “Comentário Literal sobre os Génesis”, mas apesar daquilo que este título possa sugerir, ele não se preocupava com a Bíblia levada à letra, mas antes reconhecia que: se conclusões bem estabelecidas no pensamento secular aparentam contradizer a interpretação tradicional da escritura, então, essa interpretação deveria ser reconsiderada. Ou seja, importava na altura o conhecimento filosófico e científico do mundo para o desenvolvimento do discurso teológico. Se já no tempo de Santo Agostinho se pensava assim, quanto mais não se deveria pensar assim nos dias de hoje. Então, o que se passa?

Depois dos contributos de Darwin para o avanço da ciência biológica, misteriosamente aparece um mito popular. Esse mito é o da implacável oposição entre religião e ciência, sendo considerado por Polkinghorne como uma «distorção historicamente ignorante da verdade», tal como o demostram Asa Gray, Charles Kingsley e Frederik Temple, entusiastas das teorias de Darwin e pensadores Cristãos.

Qual é a mensagem essencial do livro do Génesis?
As várias repetições da expressão “Deus disse” mostram, segundo Polkinghorne, que a essência da mensagem transmitida nesse relato consiste numa visão teologicamente profunda que nada existe sem ser pela vontade de Deus. Por outro lado, os acontecimentos aí relatados não têm uma conotação cronológica, caso contrário, como podia o Sol e a Lua aparecerem (Gn 1, 16) depois da verdura produzida na terra (Gn 1, 12)?

O facto da Criação se dar como uma sequência de eventos implica, sim, que a criação é um processo que se desenrola, onde – tal como acreditava Santo Agostinho – o tempo é trazido à existência tal como tudo o resto, como fruto da criatividade atemporal de Deus.

Como se resolve o dilema entre o desenrolar da história do universo, tal como a ciência nos descreve, e o relato do Génesis?
A proposta de Santo Agostinho é que o grande acto inicial atemporal de Deus criou “sementes” que, no seu devido tempo, pudessem germinar e produzir a sequência emergente de criaturas. Também podemos encontrar este tipo de pensamento em S. Gregório de Nissa, logo, damo-nos conta que esta noção do processo criativo em desenvolvimento não é uma ideia estranha ao mundo antigo.

Por outro lado, em Gn 1, 24-25 diz que «(24) Deus disse: «Que a terra produza seres vivos, segundo as suas espécies, animais domésticos, répteis e animais ferozes, segundo as suas espécies.» E assim aconteceu. (25) Deus fez os animais ferozes, segundo as suas espécies, os animais domésticos, segundo as suas espécies, e todos os répteis da terra, segundo as suas espécies. E Deus viu que isto era bom.» Ora, isto sugere ao moderno exegeta que não existe uma clara distinção entre os processos naturais (“Que a terra produza”) e a acção de Deus (“Deus fez”). Deus que ordena e sustém a natureza, age nos processos naturais, através deles e com eles, não contra eles.

Aliás, a história do universo, através do fenómeno evolutivo, revela-nos um processo imensamente frutificante. Um universo impregnado da possibilidade de vida a partir do Big Bang. Diz-nos Polkinghorne que «maravilha pode não ser uma palavra que apareça frequentemente em artigos científicos sóbrios, mas é uma palavra indispensável num discurso menos formal». Os padrões existentes no universo que descrevemos através de equações exprimem-se na sua beleza matemática, tal que Deus tudo regulou com medida, número e peso (Sb 11, 20). Nesta passagem bíblica, o cientista pode encontrar um encorajamento a «reconhecer que a matemática contém a linguagem natural a usar para compreender a estrutura física da criação» (Polkinghorne). No fundo, a ciência é um dom de Deus, faz parte do dom que é sermos Sua imagem, tal como expressa o livro da Sabedoria (7, 17-22):

(17) Foi Ele quem me deu a verdadeira ciência das coisas
para conhecer a estrutura do universo e a propriedade dos elementos:
(18) o princípio, o fim e o meio dos tempos,
a alternância dos solstícios e a sucessão das estações,
(19) os ciclos do ano e as posições dos astros,
(20) a natureza dos animais e os instintos das feras,
o poder dos espíritos e os pensamentos dos homens,
a variedade das plantas e as virtudes das raízes.
(21) Conheci tudo o que está oculto ou manifesto,
pois a sabedoria, artífice de tudo, mo ensinou.
(22) Com efeito, há nela um espírito inteligente e santo,
único, múltiplo e subtil,ágil, penetrante e puro,
límpido, invulnerável, amigo do bem e perspicaz,
Mas, se Deus-Amor é Criador, como lidar com os aspectos feios e destrutivos na natureza?
Alguns cientistas, como Jacques Monod, caracterizaram o processo evolutivo como um jogo entre o acaso e a necessidade, e serviram-se desse argumento para justificar a ausência da acção de Deus no mundo e, em último caso, justificar a dúvida da Sua existência. Contudo, Polkinghorne afirma que o «acaso não é intrinsecamente caprichoso ou insignificante, mas sustém simplesmente a particularidade contingente daquilo que realmente aconteceu», é uma «riqueza de possibilidades criadas». A necessidade, por seu turno, corresponde à regularidade no mundo que representamos através de leis. Por isso, «o processo evolucionário é a exploração misturada da potencialidade, tal como a fecundidade inerente à criação é trazida à existência através da casualidade das criaturas».
Nos anos que se seguiram ao lançamento da “Origem das Espécies” de Darwin, os seus contemporâneos Charles Kingsley e Frederick Temple testemunhavam como tinha sido luz para eles esta obra, também em termos da reflexão teológica, afirmando que Deus podia, sem dúvida, ter feito de uma vez a criação, mas o Criador escolheu fazê-la de modo mais inteligente, ou seja, criou um mundo em que as “criaturas se fazem a si mesmas”, autónomas. Como diz Polkinghorne, «O Deus que é Amor não trouxe à existência um teatro de marionetas (…), mas o dom do agapé divino foi um mundo no qual é concedido às criaturas a devida independência de serem e fazerem-se a si mesmas».
A própria ciência, nomeadamente através da Termodinâmica de Não-Equilíbrio, tem vindo a perceber que a novidade genuína emerge na fronteira do caos. Logo, não será de admirar que na possibilidade oportuna do acaso, na regularidade da necessidade, e na autonomia que assegura a liberdade do mundo, as imperfeições possam emergir como custo necessário, como o lado sombrio, ou seja, os aspectos feios e destrutivos na natureza são sinal de que a vida é uma passagem e a morte uma inevitabilidade. Sendo essa a razão pela qual o mundo actual é uma «a criação (…) sujeita à destruição» (Rm 8, 20). É precisamente no reconhecimento da necessidade de dar sentido ao feio e destrutivo na natureza que é reconhecido, também, o trabalho constante da providência divina. Um trabalho paciente, acreditando que melhor é possível e que “a esperança é a última a morrer”. Nesse sentido Ezequiel 11, 19 e 36, 26; Isaías 42, 9; 43, 19; 48, 6; 65, 17 e 66, 22; são passagens que nos falam com a linguagem da esperança.
Polkinghorne argumenta que «a imagem evolucionária que nos é oferecida pela ciência moderna sugere à teologia que esta deve ver a criação como uma grande e temporal improvisação», sendo «central à apropriação teológica desta visão, a compreensão (…) [que] o acto de criação foi um acto de auto-limitação kenótica do poder divino, abraçado livremente por um Criador que permite às criaturas que sejam e se façam a si mesmas». A expressão kenót
ica
significa um auto-esvaziamento do próprio Deus que cria espaço, dando-se a Si mesmo por amor. O culminar deste auto-esvaziamento é o próprio grito paradoxal de Jesus na cruz que perde Deus por Deus, limite de toda a kenosis: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Mt 27, 46).
No final do artigo, Polkinghorne questiona: «Se a nova criação será libertada da morte, luto, choro e dor (Ap 21, 4), porque se deu o Criador ao trabalho com a velha criação, cheia de mortalidade, tristeza e sofrimento?
Polkinghorne diz que a Bíblia não dirige uma resposta directa a esta questão, mas é uma questão em relação à qual o teólogo, ou mesmo qualquer crente, não poderão ficar alheios. Podemos encontrar uma pista no facto da vida deste mundo ser uma preparação para a vida que há-de vir. Como recorda S. Paulo «o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração do homem não pressentiu, isso Deus preparou para aqueles que o amam» (1 Cor 2, 9). Assim, a diferença que traz a nova criação para este mundo está na diferença de relacionamento com o seu Criador, o que se pode justificar pensando que Deus age, sobretudo, por amor e através dos relacionamentos.
«O propósito de Deus é transformar a velha criação na nova, tal como o corpo morto de Cristo foi transformado no corpo ressuscitado e glorificado». E conclui Polkinghorne que «a verdade é uma, e as verdades científica ou teológica não estão em conflito, pois complementam-se e iluminam-se reciprocamente».