Começo por uma experiência pessoal. Um dia recebi um email de um grande amigo com o qual partilhei muitas aventuras Cristãs que dizia
«Basicamente, deixei de acreditar na existência de um Deus pessoal. Os conhecimentos que tenho adquirido por via de alguns ramos das ciências exactas, tais como a Física (astrofísica, quântica, relatividade, etc.) a Medicina (neurologia, etc.) e a Biologia (evolucionismo, biogénese, etc.), entre outras, a par do estudo de alguns cientistas (Einstein, Espinosa, Tyson, etc.) e de reflexão própria, levaram-me a tomar como impossível a existência de um Deus tal como o concebi, em comunhão com os cristãos, até recentemente.»
Penso que através deste exemplo se entende a razão da pergunta. O seu pressuposto base é o de que a ciência e as explicações que providencia sobre o funcionamento da realidade esgotam tudo o que é possível saber sobre ela. Ou seja, a realidade é a realidade material. Será mesmo assim?
Pensemos na definição de “conceito”? O que pode a ciência dizer sobre a realidade do que é “conceito”? Este excessivamente simples exemplo levamos a pensar como é possível conceber mais realidade para além da material. Por outro lado, se a fé estimula o humilde desejo de conhecer, significa que estimula a ciência a explicar o mundo e as leis naturais que este encerra e a fazê-lo cada vez mais e melhor, pois, conhecer a ordem presente neste mundo é a forma mais óbvia de um cientista-crente, ou qualquer crente se maravilhar com a Criação de Deus.
Por outro lado, o ateísmo vale o que vale o conceito de Deus que nega, pelo que rejeitar a existência de Deus com base no poder explicativo da ciência significa que antes se procurava esse poder explicativo em Deus, de tal forma que esse preenche os espaços do nosso desconhecimento. Esse é um Deus-das-lacunas, uma causa entre outras causas, logo, não é, pelo menos, o Deus dos Cristãos.
Por fim, diz este meu amigo
«apercebi-me da não existência de um sentido para a vida que não seja aquele que cada um eventualmente lhe atribua, mas não no sentido último, escatológico, eterno. Aquilo de que me apercebi é que a vida, a consciência, a memória, tudo isso acaba, de facto, quando morremos.»
Se cada um dá o sentido que quer à vida, implica uma viragem em direcção ao “eu” e, naturalmente, se o “eu” se sobrepõe, retira espaço ao Outro que dá sentido último à nossa existência e resta apenas o que é material. Porém, penso que ao tomar esta opção, acaba por ocorrer uma morte maior de que a morte física. Refiro-me à morte como corte da relação com Deus, ou seja, uma morte espiritual. Só morrendo o “eu” se abre espaço à possibilidade de voltar a encontrar este sentido último que o ser humano busca no seu íntimo onde se demonstra como matéria e espírito são uma coisa só.
Miguel,
«Se cada um dá o sentido que quer à vida, implica uma viragem em direcção ao “eu”»
Mas se o sentido da vida não vem do eu não é o sentido da vida. O sentido da vida nunca pode ser algo dado pelo outro. De Kant a Sartre esse aspecto parece consensual. Nós somos um fim em nós próprios e quer deus exista quer não exista o problema de encontrar o sentido da vida é exactamente o mesmo. É um problema do eu. Não do outro.
Caro Ludwig,
Mas se o sentido da vida não vem do eu não é o sentido da vida. O sentido da vida nunca pode ser algo dado pelo outro. De Kant a Sartre esse aspecto parece consensual.
Parece consensual na perspectiva do “I-it”, mas não do “I-Thou” como em Martin Buber, entre outros. De qualquer forma, não percebo como justificas que se o sentido da vida não vem do eu, não é sentido de vida. Quantos pais não vêem o sentido da vida nos filhos, quando tudo o resto não tem sentido… Diferente do que pensas, não acho nada consensual.
Miguel,
«Quantos pais não vêem o sentido da vida nos filhos, quando tudo o resto não tem sentido…»
Se a pessoa decide dar sentido à sua vida pelos seus filhos, então esse sentido vem do eu.
Se alguém lhe diz “o sentido da vida é os teus filhos”, isto não serve de nada — precisamente porque não vem do eu.
O sentido da tua vida pode ser os teus filhos, ou a poesia, ou a profissão, ou a contemplação, ou até um deus, real ou imaginário. Mas para ser o sentido da tua vida tem de vir de ti.
Ludwig,
podes restringir o sentido da vida ao “eu”? Podes, mas não necessariamente.
Não há qualquer razão para excluir que o sentido da vida venha do outro, quando ontologicamente penso “sou, porque existes”. É uma questão de pensar o ser em termos do “eu” ou do “outro”. No caso deste post, é o outro que me traz à existência. O centro da ontologia relacional subjacente está precisamente nessa viragem.
Eu penso, tal como apliquei no post, que isso possui implicações muito importantes.
Dizer que o sentido da vida apenas vem de si próprio é a consequência lógica de um pensamento nos termos do qual qualquer sentido de dever ou imperativo ético que não corresponda ao “eu” é falso.
De facto, o ateísmo é sobretudo uma concepção da existência legitimadora do egoísmo.
Dizer que o sentido da vida apenas vem de si próprio e é apenas uma questão subjectiva é uma escolha pessoal, tal como é, de facto, dizer que o sentido da vida é algo que existe objectivamente e que esse sentido é amar a Deus e ao próximo.
Não é possível certificar “científicamente” qual das escolhas é a correcta.
Contudo, a primeira escolha, traduz tendencialmente, em virtude dos seus pressupostos lógicos, uma escolha ética egoísta (e atenção que não estou a dizer que todos os ateus são egoístas) enquanto a segunda escolha traduz tendencialmente, em virtude dos seus pressupostos lógicos, uma escolha ética de amor porque quem assim “escolhe” sente o dever de aceitar o pedido de Deus para escolher o Amor (e atenção que não estou a dizer que todos os católicos cumprem sempre este pedido de Deus – ateus e católicos têmcomportamentos de pecado e comportamentos de santidade).