Existe um problema relativo à forma de encarar a vida humana intra-uterina. É ou não uma pessoa? Não há dúvida em termos biológicos que se trata de um ser humano com património genético próprio e que iniciou, desde a sua concepção e independentemente das circunstâncias em que essa se deu, um processo contínuo que tem o seu termo biológico com o evento morte. Mas existe na sociedade a dúvida se é, ou não, pessoa.

Penso que podemos encarar o ‘ser humano’ de duas formas complementares. Aquilo que é a sua substância e aquilo que é o seu modo. Ou seja, existe o que somos e o como somos, tal que pensar que somos humanos implica necessariamente pensar no ‘substrato do ser’ e no ‘modo de ser’. Quer isto dizer que deixamos de falar em ‘ser humano’ se olharmos apenas, em exclusivo, para um só destes dois aspectos.

O que diz respeito ao ‘substrato’ envolve todo o processo biológico associado ao ser humano, incluindo todo o ambiente físico e sociológico que o envolve. É do corpo que o constitui e do ambiente que o rodeia, que faz do ser humano aquilo que ele é, na sua dimensão cósmica, o acumular histórico de incrementos de complexidade desde o Big Bang. Porém, é o ‘modo’ que atribui unicidade a cada ser humano e, por isso, faz dele ou dela uma pessoa. O ‘modo’ de ser humano constrói-se na interacção que esse tem com os outros, implica o ‘outro’ como ‘modo’ de me trazer à existência, ou seja, implica necessariamente relação. Poder-se-ia então dizer que sem relação não existiria ‘modo de ser’, logo não existiria pessoa. Assim, enquanto que o ‘substrato’ manifesta o facto de sermos racionais e conscientes, como manifestações da ‘substância’ que nos faz ser, o ‘modo’ manifesta o facto de sermos relacionais e por isso, pessoas. Vendo o ser humano desta forma, a sua integridade e dignidade existem enquanto razão e relação, alteridade e comunhão (Zizioulas, 2006).

Exemplo: se um ser humano com 24h após a sua concepção fosse encarado apenas como um aglomerado de células vivas, não seria pessoa. É efectivamente o seu ‘substrato’ de ser humano. Mas o que faz dele pessoa é o conjunto de relações que gera em seu redor, directas (em termos biológicos repercutindo-se em alterações fisiológicas no corpo da mãe) e indirectas (a influência que essa concepção exerce sobre o pai, familiares e amigos).

Se a sociedade não for capaz de entender que uma pessoa existe enquanto relação, será muito difícil fazer entender que a escolha de uma mãe de
abortar o seu filho é ilícita, uma vez que não são salvaguardados os interesses do
embrião como pessoa pelo facto de ser relacional e, consequentemente, com o direito a viver. Por outro lado, o aborto conduz uma mãe a uma decisão que fere a sua integridade e dignidade como mulher porque quebra uma relação constitutiva do seu ser como pessoa, uma vez entendida pessoa como relação. Se for aprofundado em termos biológicos, psicológicos, sociológicos e económicos esta noção de pessoa como relação, quantas respostas não se encontrariam para as causas e consequências do aborto? E sendo mais ousados, que outras respostas se encontrariam para outros domínios onde a vida depende de ser ou não pessoa? Eis a questão …

John Zizioulas (2006) Communion and Otherness, T&T Clark