No dia 22 de Janeiro de 2011, numa Homilia por ocasião da Solenidade de S. Vicente, o Cardeal-Patriarca José Policarpo dirige uma palavra aos Cristãos sobre um combate cultural. Afirma ele que:
«Viver o cristianismo a sério no mundo de hoje é travar um grande combate. A cultura secularista não persegue, mas ataca, vai tentando reduzir o espaço humano para a fé, tornando-se quase uma religião alternativa. Bento XVI disse recentemente com clareza que a nova evangelização supõe um grande combate espiritual: “O que importa é que procuremos viver e pensar o cristianismo de tal modo, que ele absorva o moderno que é bom e está certo e, ao mesmo tempo, se separe e diferencie do que é contra a religião”. Este combate da fé tornou-se um combate cultural com densidade espiritual. É ainda Bento XVI quem o diz: “muitas vezes perguntamo-nos como é possível que cristãos que, pessoalmente são crentes, não tenham força para reforçar a acção política da sua fé. Temos sobretudo de procurar que as pessoas não percam Deus de vista. Temos de procurar que, depois, elas próprias, a partir da força da sua própria fé, entrem no confronto com o secularismo e consigam concretizar a separação das mentalidades. Este enorme processo é a verdadeira, a grande missão deste tempo. Só podemos esperar que a força interior da fé, presente no homem, se torne publicamente potente, moldando o pensamento, e que a sociedade não caia simplesmente no abismo” .
Neste combate, os cristãos fragilizam-se quando, em espírito de pseudo-abertura, adoptam os critérios da cultura secularista e substituem o testemunho e a mensagem da fé por um discurso que o mundo gosta de ouvir. O aviso de Jesus concretiza-se hoje, de outra maneira: cautela com os homens que procuram reduzir o espaço humano e cultural da fé; cautela com os cristãos que, para serem ouvidos pelo mundo, não têm coragem para proclamar a mensagem de Cristo. Este campo de batalha é a nossa sociedade.»
Permitam-me um comentário.
Estamos hoje sob uma pressão cultural da parte de quem fala do que não crê, crendo que não há espaço para crer noutra coisa senão nessa não-crença, e sem justificação para essa crença na não-crença (refiro-me por exemplo ao materialismo científico, que não deve confundir-se com ciência).
Dentro desta pressão cultural, reduzir o “espaço humano para a fé” assume pressupostos de que é possível explicar a razão e sentido da fé reduzindo-a a um mero objecto formal das ciências sociais ou naturais, perdendo, no fundo, “Deus de vista”. Mas de qual Deus se está a falar?
Do Deus de Aristóteles? Do Deus que Nietzsche declarou como morto? Do Deus-designer? Do Deus-das-lacunas? Do ente-sobre-o-qual-descrevo-de-uma-maneira-qualquer a quem chamo de Deus?
Frequentemente se nota que o deus contra o qual se exerce uma pressão cultural nada tem a ver com o Deus de Jesus Cristo. E mesmo quando se recolhe uma série de atributos que dizem respeito ao Deus de Jesus para depois o negar, não se entende como se conjugam esses atributos com a negação em si mesma. Não é a problemática da transubstanciação da hóstia, ou a incarnação de Jesus, ou a existência do mal que são incompatíveis com aquilo que se entende quando se refere o Deus de Jesus Cristo, mas sim a interpretação que fazemos dessas problemáticas e de como essa interpretação se conjuga com aquilo que pensamos ser um atributo de Deus.
Este combate da fé, como “combate cultural com densidade espiritual” deveria reconhecer que existem diferentes níveis de interpretação da realidade que é uma só. Deus “faz-se um” com essa realidade, sobretudo em Jesus Cristo, mas é distinto dessa realidade a que chamamos universo e tudo quanto esse encerra. Distinguir não é separar, mas sim reconhecer a diferença a partir da qual uma verdadeira unidade (por oposição a uniformidade) se pode constituir. Importa “concretizar a separação das mentalidades” sobre o secularismo que “separa” as realidades, ao passo que a dimensão espiritual da fé permite distingui-las. Até mesmo quem não crê tem fé, quanto mais não seja, a fé na sua não-crença, fazendo dessa “fé no secularismo” a “força interior” que, infelizmente, molda um pensamento fechado sobre si próprio e, por isso mesmo, auto-injustificável.
Mas o que fazer perante um “secularista”? Amá-lo.
Se pensarmos bem, é o próprio Jesus Cristo que abre o crente à possibilidade de amar aquele que perde Deus de vista quando Ele próprio se faz um com esses que se sentem abandonados por Deus ao gritar do alto da cruz “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?” (Mc 15, 34). Como diz Han Urs Von Balthasar é precisamente este auto-esvaziamento de Deus-Filho na cruz que, ao experimentar o abandono de Deus, torna possível, pela primeira vez, um ateísmo autêntico, consciente, que antes não podia existir, em virtude da ausência de um conceito genuino de Deus (Só o Amor é digno de fé, Assírio&Alvim, 2008, p. 83). A solução da força interior da fé perante o secularismo é, por isso, fazer o vazio de si por amor, para se fazer um com o secularista no amor. Mas não aquele “fazer-se um” naquilo que o outro gosta de ouvir, mas “fazer-se um” naquilo em que o outro se faz ouvir (mesmo não concordando com o que se ouve). Penso que, por vezes, um acto silencioso de amor de quem escuta se ouve mais que um grito de batalha. Sob esta pressão cultural, só depois de ter escutado com amor, com amor se pode falar.
Penso que, por vezes, um acto silencioso de amor de quem escuta se ouve mais que um grito de batalha.
Parabéns pelo texto. é uma imagem de uma socidade interessante…
Infelizmente o que se verifica é a usura das situações de pobresa e o intensificar os extremos entre pobres e ricos… no amor não deve haver equidade?
Outra questão é porque aceitar a opinião de vigários de Deus sem provas de representação de Deus…
Mesmo que aceite a imagem de Deus, porque aceitar vigários quem ainda estão à procura do norte?
Caro anónimo,
De facto, no amor a equidade experimenta-se através da partilha. Não me choca que haja diferenças nas posses entre famílias. O que me choca é a insensibilidade de quem tem relativamente aos que não têm, pois não é o ter que me faz ser, mas o amor. E o amor é ser-se dom de si, por vezes, doando do que é seu porque vive no desapego.
Quanto à opinião dos vigários de Deus, ou seja, daqueles que dão a sua vida e tudo o que é seu … por Deus. Podem eles representar Deus? Eu penso que não é por eles, ou pela sua opinião que são “representantes”. Nem sei se “representantes” é um correcto uso da palavra. Não posso eu, como leigo e crente em Deus, “representar” Deus no meu local de trabalho? Claro que sim! Dar testemunho de Deus, amando o outro, é “representar” Deus.
Quanto à “procura do norte”… pelo que disse acima, se um vigário de Deus dá toda a sua vida, tudo o que tem e não tem, por/para Deus, fá-lo porque procura o Norte? Duvido muito. Um vigário de Deus encontra o seu Norte precisamente em Deus. No caso Cristão, precisamente em Jesus Cristo. Eu penso, pelo contrário, que é o secularista que procura um Norte porque aponta para tantos, como um bacamarte, que espera vir a acertar nalgum. Muito ateus secularistas colocam todos os conceitos de Deus no mesmo saco perdendo, assim, a capacidade de os distinguir. Assim, criam algumas misturas intelectivas – por assim dizer – que me levam a pensar que é preciso “fé” para acreditar em muitas delas …
Abraço
Caro Miguel,
Muito obrigado pela sua resposta.
E parabéns pela clareza da visão que apresenta.
Plenamente de acordo sobre a possibilidade de representação lata e na importância do ser.
No entanto parece que a ideia de Deus é muito abrangente mesmo que restrita a Cristo. Já muito se fez em nome de Cristo e em direcções opostas, parece um norte com mais mobilidade do que o Norte magnético.
Relativamente ao aparente desprendimento material, quando os representantes eclesiásticos deixarem de parte o ouro que transportam, quer no dedo, quer no pescoço, quer as ofertas de cálices ou “rosas” essa será um sinal digno de Cristo. Até agora o desprendimento dos bens materiais da Igreja e de um casino poucas diferenças apresentam: o lucro da casa está garantido e os prémios são dependentes do azar…
Cordiais saudações,
Caro Anónimo,
eu creio que o Norte magnético mantém-se sempre, que neste caso é o próprio Cristo, o que se mantém móvel é a forma como nos relacionamos e vivemos com esse Norte, que nem sempre foi genuína, mas cedeu às mentalidades no seu tempo. Enfim, o ser humano está sempre a aprender e em Jesus encontra uma fonte inesgotável 🙂
Relativamente ao ouro, não creio que a solução esteja aí. Não é “um” anel que resolve o problema da fome, nem “todos” os anéis se fosse esse o caso, mas sim a incapacidade de ver no outro um outro eu, e fazer com ele o que gostaria que me fizessem a mim. Não há mal em ter bens, o mal é quando estamos a eles apegados. Eu não tenho dúvidas que um vigário de Deus – como lhes chamaste – que viva o evangelho autenticamente, ao ver que a solução de um problema depende de dar os bens que tem, incluíndo um “anel”, o faria sem hesitar …
Abraço
http://www.nasa.gov/vision/earth/lookingatearth/29dec_magneticfield.html
É estranho como a realidade desmente aquilo em que acreditamos quando pedimos verificação empirica…
Parece que faltam recursos para fazer a indexação dos milhares de peças religiosas no Norte de Portugal… com o ouro a valer… e anda a população sem saber como melhorar a vida…
Caro Anónimo,
“Norte magnético” é uma metáfora, e como tal, parece mais segura qual aplicada a Cristo que a sua versão física …
Por outro lado, porque razão não vendemos a Torre de Belém a um coleccionador abastado para resolver os problemas sociais portugueses e melhorar a sua vida?
Porque não?
A EDP
A GALP
A TAP
já foram vendidas?
Conhece algum interessado?
relativamente ao ouro…
Vender quando está caro e comprar quando está barato…
peças de arte? os artesãos de hoje também devem ter a oportunidade e basta ficar com a memória digital da peça e reproduzir quando bem entender… ou será de indispensavel utilidade ficar atrás de uma vitrine?
Caro Anónimo,
EDP, GALP e TAP são empresas, a Torre de Belém não é, nem os bens da Igreja, nem provavelmente os artesãos das maiores obras de arte portuguesas estarão vivos.
O que quero dizer é que a cultura não se vende e quaisquer adornos que possuem os vigários de Cristo não são luxo, mas cultura …
Claro! Deus nos livre de vender quadros, livros, esculturas…
Há quadros, livros e esculturas que são feitas para efeitos comerciais, mas nem todos. As iniciativas para os sem-abrigo, a Comunidade Vida e Paz, Banco Alimentar, entre outras permitem vislumbrar uma solução …
Numa parábola bíblica, há três servos que recebem três quantias diferentes de moedas. Eles deveriam guardá-las até que o dono da terra onde moravam voltasse de viagem. Quando ele regressou, aqueles que entregaram mais moedas do que lhes foram confiadas (porque investiram a quantia e multiplicaram seu valor) ganharam elogios. Um apenas teve a ideia segura: enterrar o dinheiro e entregar exatamente o mesmo valor e a mesma moeda ao legítimo dono. Esse foi acusado de “Centerrar o talento” e foi punido.
Ficar num vitrine ou enterrar os valores será assim tão diferente?
Caro Anónimo,
não creio que fazendo uma interpretação literalista se chegue ao profundo significado dessa parábola. Aquilo que temos é o que nos foi dado, e se não pomos a render os dons que nos são dados, de nada vale. Muitos põem o dom de cantar, de tocar um instrumento, de ensinar, de limpar, organizar, etc. ao serviço dos outros e na felicidade do outro vêem o lucro obtido. Eu penso que se Jesus não tivesse usado o dinheiro como metáfora não teríamos entendido tão bem, mas isso não quer dizer que se aplica literalmente a parábola aos bens da Igreja, embora muitos sejam postos a render, como por exemplo os museus.
Contudo, gostava que me desses um exemplo de “vitrine” que posta a render (e como) resolveria um problema social (e qual) …
Falemos então de números puros e duros.
Se nem a inventariação está feita imagino que não exista uma avaliação das vitrines da paróquias do país…
Sem esquecer os aneis e o que está ao pescoço…
Com essa avaliação e com esse número poderemos dar o passo seguinte:
Resolver os problemas de Portugal entre eles o social…
Nem que seja comprando Portugal…
cumprimentos,
Caro Anónimo,
onde estão os números? O que está dentro das vitrines? Quanto vale um anel, e o que está ao pescoço? Quanto valerá isso?
Quais problemas se pretenderia resolver? Que tipo de investimento seria necessário para resolver os problemas uma vez que esses sejam identificados?
Para que serviria comprar Portugal?
Abraço
quae censeri
Estes dados, divulgados pela agência religiosa Ecclesia, são os mais recentes da Igreja Católica em Portugal e referem que o número de sacerdotes diocesanos baixou de 3159, em 2000, para 2825, em 2008, o que representa uma diminuição de 11 por cento.
Em relação ao clero religioso, a descida foi de dez por cento: de 1078 padres em 2000 para 972 em 2008.
É complicado encontrar números relativamente às peças valiosas quando a própria insituição não tem catalogado o próprio património, pelo menos publicamente.
Não percebi a ligação…
Desde 1976, Portugal está dividido em 18 Distritos e 2 Regiões Autónomas insulares (Açores e Madeira), que englobam 308 Municípios (ou Concelhos) e que se sub-dividem em 4257 Freguesias.
Aproximando com uma Igreja por Freguesia…
Não te esqueças de que existem muitos casos de um padre para muitas freguesia, por vezes uma igreja por várias freguesias e que nem todas possuem relíquias …
e há aquelas freguesias com várias Igrejas dedicadas a patronos diferentes, uma a Maria, outra a Cristo e outra aos Mortos…
Curioso… não encontro nenhuma freguesia sem Igreja… o largo da Igreja e a própria Igreja parece que faziam parte da própria identidade de freguesia