«Antes de mais, deve-se admitir inequivocamente que não se pode provar a necessidade de Deus da mesma maneira que se pode verificar experimentalmente a teoria quântica descoberta por Planck. Dito isto, embatemos na verdadeira raiz do movimento filosófico de toda a época moderna e no fundamento do seu dilema actual (…) o esforço de tornar a filosofia uma ciência exacta, de tratá-la more geometrico, segundo a expressão de Espinosa.
(…)
Com isto, uma conclusão de grande alcance é certa: no momento em que a filosofia se adequa definitivamente ao cânone das ciências exactas e se encerra com isso o sistema do pensamento moderno (…), torna-se claro que a conclusão do sistema conduz ao absurdo. (…) Onde se pensa apenas de forma exacta, sobra o homme adsurde, o qual só pode verificar (…) que “uma vida que não sabe que não tem nenhum sentido tem pouco sentido” (P.R. Simon). O homem que não consegue ultrapassar não só a sua consciência, mas também a sua linguagem, no fundo, não pode falar de mais nada».
Joseph Ratzinger, Fé e Futuro, Principia, 2008, pp. 74-75
O que Ratzinger acima descreve é o que tenho assistido na blogosfera quando tento perceber o pensamento ateu de alguns ateus. Desafiei Ludwig Krippahl, um ateu activo nos blogs a ensinar-me algo com o seu ateísmo e ele gentilmente correspondeu escrevendo o post: o elefante. Nesse diz que
«”Ateu” foi um termo pejorativo criado por crentes para designar quem não adorava os deuses certos (i.e. os desses crentes).»
Não estou certo da intenção com que deu esta definição, mas, deste ponto de vista, quem não adorava os deuses certos, adorava, certamente os deuses errados, pelo que na leitura de Ludwig todos somos crentes e aqueles que negam os deuses certos são “ateus”. Não nova esta afirmação. Justino na sua Primeira Apologia, no capítulo VI afirmava que «Por isso somos chamados ateus. E confessamos que somos ateus, na medida em que os deuses deste tipo estão em causa, mas não com respeito a Deus, mais verdadeiro, o Pai da justiça e da temperança e outras virtudes, que está livre de qualquer impureza». No entanto, o conteúdo da afirmação de Ludwig pareceu-me conter algo de novo e paradoxal, pois elimina a distinção que uso frequentemente entre crentes e não-crentes, afirmando que todos somos crentes, apenas diferimos no Absoluto – por assim dizer – que cremos. Nesse sentido tentarei perceber qual o deus certo que Ludwig adora. Afirma
«Ateu é quem não tem deuses, em contraste com o crente que adora uma ou mais divindades e o agnóstico que ou não sabe para onde pende ou n
ão diz para não ter chatices.»
ão diz para não ter chatices.»
Bom, afinal eu estava enganado, pois “ateu é quem não tem deuses”. Portanto, actualizando, o ateísmo de Ludwig além de não adorar os deuses certos, não adora qualquer deus. Mas, de onde vem esta antecipação espontânea de negar qualquer noção de Deus? Vem da natureza religiosa presente em cada ser humano, como uma realidade histórico-cultural que não nega Deus, propriamente dito, mas um ou vários conceitos de Deus. Alguns argumentam que a existência de múltiplos conceitos de Deus é, em si mesmo, um argumento contra a existência de um sequer, mas infelizmente esquece quão mal definidas estão as fronteiras do divino, caso contrário não seria divino. Qual então o conceito de Deus negado por Ludwig?
« a maioria dos deuses que se adora por aí são ficções incríveis. É um exagero. É tudo infinitamente omni isto e aquilo, super duper xpto (…)
Para deixar de ser ateu não me basta crer ou ter uma religião. Tenho de crer num deus em particular e ter uma religião específica.(…)
[Alguns dizem que] o deus certo é o que age sem intervir, está para além do tempo e não se pode detectar de forma alguma. O que na prática se resume assim: “não existe”. Não vejo evidências de deuses em lado nenhum. Não encontro qualquer utilidade para essas hipóteses.»
Um Deus infinito e omni…, um só Deus e não vários, alguém cuja existência deveria ser comprovada por evidência científica (certamente) e utilidade na sua existência. Em primeiro lugar destaca-se a dimensão histórica desta posição ateísta enquadrando o Deus que se nega num monoteísmo e não politeísmo, uma herança bíblica. Em segundo, a filosofia e teologia são reduzidas às ciências exactas implicando que, não havendo uma prova científica do que é divino, o divino e absoluto não existe, logo, é um absurdo acreditar em Deus. Ou seja, o ateu vai do absoluto ao absurdo pelo reducionismo metodológico. Contudo, existem duas expressões interessantes “não vejo” e “não encontro”. Mas, como “ver Deus” se há uma longa tradição Bíblica que afirma “a Deus nunca ninguém o viu” (1 Jo 4, 12)? Como encontrar Deus senão naquele mais pequeno (Mt 25, 40)? Quando não se vê, o problema pode estar
na forma como se olha, e quando não se encontra, na forma como se procura. Recentemente, um ateu de renome, Anthony Flew, converteu-se ao teísmo (não ao Cristianismo) e não foram provas científicas que o levaram ao teísmo, mas sim a influência filosófica. E aqui reside o “ponto de rebuçado” de uma nova abordagem: o ateísmo blogosférico.
na forma como se olha, e quando não se encontra, na forma como se procura. Recentemente, um ateu de renome, Anthony Flew, converteu-se ao teísmo (não ao Cristianismo) e não foram provas científicas que o levaram ao teísmo, mas sim a influência filosófica. E aqui reside o “ponto de rebuçado” de uma nova abordagem: o ateísmo blogosférico.
Embora não saiba ainda como, ou se é verdade o que penso, ouso especular que este ateísmo, de tão superficial que é, torna-se absurdo. Se um ateu estudasse mais o pensamento ateísta, estou certo que perante o absurdo daquilo que nega se abriria uma porta para o Absoluto que tanto procura. Se não procurasse esse Absoluto, verdadeiramente, nem sequer pensaria nele.
Não me é de modo nenhum evidente qual o papel/influência das teologias e filosofias na condução /desenvolvimento da civilização Humana. O único desenvolvimento real e inegável é o que decorre do uso da Tecnologia auxiliada pela Ciência.
Todo o alívio que tem trazido pela introdução das máquinas e da Medicina nas duas últimas centenas de anos é de facto a única marca positiva de alguma evolução civilizacional. Só esta herança me deu possibilidade de estar aqui a debater estas questões apesar de não ter nascido em “berço de ouro”. Não fosse essa herança e teria que estar a continuar o modo de vida dos meus pais (o qual não tem nada de mal mas é mais limitado que aquele a que tenho acesso).
Por oposição a esta herança concreta e positiva, toda a herança Religiosa não é mais que um exercício de tentar conferir um sentido à vida Humana que é cada vez mais difícil de conciliar com a vida real.
Concedo obviamente que a Ciência que se faz, faz-se condicionada pelas influências culturais herdadas por cada indivíduo na sociedade em que nasce e é educado. A questão é que se não fosse estas heranças Cristãs a influenciarem, haveriam de ser outras, e ningúem poderá provar que esta é a melhor das heranças em que poderíamos crescer. Bem pelo contrário, parece-me que existem inúmeros argumentos indicativos de que a psicologia duma sociedade cristã tradicional enferma de muitas características nefastas para o florescimento de uma maior harmonia social. Dificilmente se poderá argumentar que os valores cristãos tradicionais – a começar pelas limitações do Homem, e pela sua insignificância sem a referência a um seu suposto criador, o qual é o único meio de conferir um sentido à sua vida, … – não tenham causado mais prejuízos sociais do que benefícios. São valores muito negativos e desresponsabilizadores do Homem pelo seu Destino.
Pessoalmente, as únicas heranças Cristãs com que fiquei para mim são as sublimes músicas corais ( e não só ) compostas sob a influência das crenças no Divino (ouvir por exemplo paixão segundo São Mateus de J. Bach). Penso que nesse caso sim, está comprovado o valor de se acreditar e reverênciar em algo que nos ultrapassa/esmaga de forma absoluta. No entanto fica por provar se não se conseguirá compor o mesmo género de arte arrebatadora inspirado num outro tipo de espiritualidade.
Abraçaria muito mais facilmente uma forma de espiritualidade que fosse mais centrada na maravilha que é a consciência do Homem. Acredito que uma filosofia de vida baseada nesse pilar poderia conduzir as sociedades por caminhos mais construtivos.
Em conclusão, o Niilismo tão criticado pelo Miguel Panão parece-me bem mais honesto que a poesia declamada nos seus posts. O Amor é muito lindo mas é quando é concreto e sentido. Se ele chegou a esse estado de alma permanente em que se sente uno e em harmonia com toda a “criação”, tanto melhor para ele. Eu continuo à procura – nos raros momentos em que estou liberto das minhas obrigações díarias profissionais e familiares – e ainda que não saiba como e/ou se o irei encontrar, sei bem qual o caminho que não tomarei.
Caro “O gajo”,
em primeiro lugar obrigado pelo seu comentário e interesse. Como deve imaginar não sou capaz de concordar com tudo o que disse, sobretudo por acreditar que a “Tecnologia auxiliada pela Ciência” não é “o único desenvolvimento real e inegável” que faz parte da cultura humana.
Da mesma forma que essa tecnologia cura ao serviço da medicina, destrói quando mal orientada. Sem ética, a ciência de pouco vale à Humanidade. A religião, por sua vez, contribui nessa orientação para o bem. E se estiver a pensar em actos terroristas – ditos – de base religiosa, sou da opinião que a sua base é mais política e da busca de poder, do que o poder da busca pelo divino.
É verdade que se não fosse a herança Cristã, outra herança espiritual influenciaria a cultura, mas isso acontece já no mundo pela co-existência de diversas religiões. O que as une é a experiência que também as realidades espirituais são reais, e partilhadas praticamente pela quase totalidade da população humana.
Não sei a que «inúmeros argumentos indicativos de que a psicologia duma sociedade cristã tradicional enferma de muitas características nefastas para o florescimento de uma maior harmonia social» se refere. Eu, por exemplo, lembro-me como o Darwinismo Social alimentou a noção nazista de raça ariana. Por outro lado, não percebi quais eram os «valores muito negativos e desresponsabilizadores do Homem pelo seu Destino». Se me explicasse, gostaria muito de saber o que o levou a tais afirmações.
Abraçaria muito mais facilmente uma forma de espiritualidade que fosse mais centrada na maravilha que é a consciência do Homem.
Desse ponto de vista, quer maior espiritualidade que aquela que se centra no Filho do Homem, em Jesus? Mas será por aí que devemos ir? Alguns poderão aceitar esse desafio, mas importar também aceitar aquele que o não aceitam, correcto? Teremos todos de ter uma só religião humana?
Eu penso que do ponto de vista Cristão, de Deus que é Trindade, ou seja, unidade na diversidade isso poderá não fazer muito sentido. O Cristão poderá ver nas outras religiões aquilo que chama de “sementes do Verbo”, assim como as outras religiões verão nos Cristão sinais de como o seu fundador inspira na diferença. O importante a alcançar é a concretização (que existe já e testemunhei-a várias vezes) de uma fraternidade universal. Algo inspirado por valores espirituais que procuram no outro, o sentido da nossa própria existência. Isso implica agir concretamente e conheço imensas iniciativas nesse sentido. Recordomento, por exemplo, dos School-mates. Nestas o amor é bastante concreto, recíproco e inclui todos, tendo por base a regra mais comum a todas as religiões: “Faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem a ti”.
O niislismo – como disse – parece-lhe mais honesto do que aquilo que digo e acredito que pense assim por não conhecer em profundidade a origem de muita coisa que digo, mas apesar de também eu considerar o niilismo honesto, pergunto-me se esse dará resposta às questões mais profundas do ser humano… Se assim fosse, importa viver o niilismo a sério e depois partilhar o que experimentou.
Cordiais saudações
Caro Miguel Panão:
Acho que não é preciso entrarmos nessa discussão dos benefícios e dos malefícios da tecnologia consoante o seu uso. Conhece alguma criação Humana que não tenha sido já usada em prol de interesses mesquinhos e egoístas? Acho que é auto-evidente que qualquer ideal pode ser distorcido e/ou usado para os fins mais variados. Não existe simplesmente nada que seja intrinsecamente bom ou mau. Qualquer coisa tem as 2 faces. Não concorda?
Esse exemplo que deu do uso das ideias do Darwinismo é de facto um exemplo bem triste do que é possível fazer distorcendo-se de forma propositada e consciente ideias que em si mesmas não têm qualquer valor ético.
“Sem ética, a ciência de pouco vale à Humanidade”. Ninguém pode deixar de concordar com tal afirmação. Isso é aliás verdade para todas as actividades Humanas, desde a Ciência à Política e à Governação. A questão que estamos eventualmente aqui a discutir reside em saber no que devemos basear essa ética. Devemos baseá-la num conjunto de valores desenvolvidos a partir de princípios centrados na importância de um tal suposto e controverso Criador ou devemos antes centrá-la no Homem que é no fim do dia a única realidade incontornável e indiscutível das nossas existências.
No fim do dia (ou das nossas vidas), cada Homem morrerá com as suas certezas e incertezas, e o Mistério da nossa existência permanecerá incólume para a restante Humanidade. Como perceberá daqui, sou um agnóstico no sentido original do termo. Não acredito que o conhecimento do Absoluto (seja lá o que isso for) seja alcançável pelo Homem. Assim acredito que o melhor que temos a fazer é procurar viver o mais harmoniosamente possível entre nós e é nessa premissa e nessa única que devemos basear qualquer sistema ético candidato a regular os destinos da Humanidade. Este é o ponto em que me poderão apelidar de niilista?
Quando me referia a inúmeros argumentos indicativos dos valores nefastos do Cristianismo, aconselho a leitura dos textos do Bertrand Russel coligidos sob o título “Porque não sou Cristão”. Ele resume bastante bem muitos desses argumentos. Eu apenas resumirei aqui um dos princípios a que cheguei por mim próprio quando me afastei da minha educação católica tradicional. Qualquer sistema ético que baseia o respeito dos Homens entre si na reverência e no temor a um ser maior que eles, o qual os julga e castiga pelos seus actos mais incorrectos não pode ser um bom sistema. Se juntarmos a isso a desresponsabilização induzida pela figura do Mal personificada nos anjos maus e no seu chefe – um tal de Satã, então temos o caldo entornado.
A este propósito, gostaria de saber qual é a posição actual da Igreja de Roma nos dias de hoje. Notei pelo seu blog que se mantém a par das publicações do Santo papa, pelo que imagino que deva saber. A minha questão é concretamente esta:
a Igreja ainda defende oficialmente a existência de uma entidade Maléfica que de alguma forma intervém nas vidas dos Homens, ou isso serve já só para escrever guiões de filmes e eventualmente satisfazer o ego a alguns sacerdotes?
Claro que não nego todos os valores Cristãos (nem poderia uma vez que fui educado como tal). Admiro em particular, tal como a maior parte das pessoas aliás, as palavras e actos que são atribuídos pelos textos dos Evangelhos a um Homem que procuram fazer-nos crer ser uma encarnação do Deus Cristão. Nisto não vou tão longe como Bertrand Russel, o qual dizia se bem me lembro que não acreditava sequer que Jesus tivesse sido o melhor dos Homens, pelo simples facto de acreditar no Inferno (como instrumento Divino para castigo dos Homens que se desviam do Caminho). Se bem que o argumento tenha o seu peso, acho que Bertrand Russel esqueceu aqui o contexto histórico em que tem que se inserir a vida do tal homem que supostamente deu origem aos textos em questão.
Nesta altura, costumam os fiéis dos textos Sagrados interromper com algo do género:
“Eh pa e tal… Calma aí. Não podes levar os textos à letra. Aquilo tem significados ocultos que tens que aprender a extrair.”
A isto pode-se responder de milhentas maneiras, entre as quais eu escolherei aqui uma bem humorada dizendo algo como
“Então o livro que é suposto encerrar os cânones de que tanto precisamos para instituir um sistema ético Universal está codificado??? E quem tem a chave de descodificação? São os Judeus? Os católicos? Os protestantes? Os …? E quem lhes deu a chave? Ou será que estão a brincar comigo???”
Quando cheguei a esse ponto do meu percurso, preferi deitar todo o pacote fora e reconstruir por mim próprio. E penso que aproveitei algumas coisas… Como dizia, alguns dos ensinamentos de Jesus são do melhor que há. Mas não são exclusivos do discurso Cristão! Nem são exclusivos de discursos religiosos. O que reformulei para mim foram as motivações e os princípios sobre os quais procuro basear e acreditar na mensagem do Amor ao Próximo. E ainda que nunca tenha posto isso por escrito, creio que o princípio em que devemos apoiar essa prática do Amor ao próximo deve pura e simplesmente basear-se na constatação de que tudo quanto temos de mais valor é termo-nos uns aos outros. E nada mais.
Aliás, parece-me que encontro alguns elementos comuns no seu penúltimo parágrafo, em que chega a dizer “O importante a alcançar é a concretização de uma fraternidade universal. Algo inspirado por valores espirituais que procuram no outro, o sentido da nossa própria existência.”
Parece-me que temos aqui uma sintonia perfeita. A minha questão é só a seguinte: para que precisamos de Deus nesta equação? Não nos bastamos a nós próprios para chegar a essa fraternidade em que os sentidos das nossas existências se entre-alimentam?
Caro “O gajo”,
Conhece alguma criação Humana que não tenha sido já usada em prol de interesses mesquinhos e egoístas? Acho que é auto-evidente que qualquer ideal pode ser distorcido e/ou usado para os fins mais variados.
Por muito que diga, por exemplo, “óculos”, compreendo o alcance daquilo que está a dizer e, de facto, a criatividade humana possui esta ambivalência, sem dúvida.
Não existe simplesmente nada que seja intrinsecamente bom ou mau.
Eu penso que algo pode ser criado como intrinsecamente bom, mas que lhe é dado mau uso relativamente à sua finalidade. Isto em termos de criação tecnológica.
A questão que estamos eventualmente aqui a discutir reside em saber no que devemos basear essa ética. (…) Devemos baseá-la num conjunto de valores desenvolvidos a partir de princípios centrados na importância de um tal suposto e controverso Criador ou devemos antes centrá-la no Homem que é no fim do dia a única realidade incontornável e indiscutível das nossas existências.
O centro da acção ética do Cristão é Deus Uno e Trino e isso não me parece uma má opção, na medida em que dela faz parte uma arte de amar cujas características inclui ver Jesus no outro (“Tudo o que fizerdes a um dos mais pequeninos a mim o fizestes”), logo ver Jesus no outro implica ver o outro tal qual é na sua humanidade e isso não conduz a atitudes más eticamente. A questão que se coloca é se isto é válido para quem não acredita em Deus, e para mais, no Deus Cristão.
Recordo de ter lido no livro “Existe Deus?” com um diálogo entre Joseph Ratzinger e Paolo Flores d'Arcais (um ateu) que o último reconhecia não haver qualquer problema em viver os valores do Evangelho, mesmo não acreditando em Deus. Ou seja, esses valores que partem sempre do amor como dom-de-si-mesmo possuem a capacidade de gerar uma ética onde o bem está intrinsecamente presente em cada intenção. Isso implica, por vezes, o perder a minha ideia para acolher a ideia do outro, o “fazer o vazio” para acolher totalmente o dom do outro. Não vejo como uma ética que tem por base, por exemplo, os valores do Evangelho, vivido com autenticidade, possa servir “interesses mesquinhos e egoístas”. Eu penso que se isso acontecer, então esses valores não estão a ser vividos com autenticidade.
Contudo, centrar a acção ética no Homem, um antropocentrismo, possui diversos problemas, os mais evidentes manifestos pela crise ecológica. Num outro post propus uma visão diferente da acção ética que se centra na comunhão e, embora reconheça a sua inspiração teológica, creio ser suficientemente universal para ser tomada em consideração.
No fim do dia (ou das nossas vidas), cada Homem morrerá com as suas certezas e incertezas, e o Mistério da nossa existência permanecerá incólume para a restante Humanidade.
Até pode ser como diz, mas não vê aí a importância dos relacionamentos? É precisamente perante a estranha idiferença que pode ser a existência de cada um de nós que me descobri enquanto me relaciono com os outros e gero relacionamentos. A relação é o que nos constitui ontologicamente. No artigo do post anterior escrevi algo sobre isso.
Não acredito que o conhecimento do Absoluto (seja lá o que isso for) seja alcançável pelo Homem.
Eu também não, mas acredito sim que é o Absoluto que se auto-comunica e me permite conhecê-lo.
acredito que o melhor que temos a fazer é procurar viver o mais harmoniosamente possível entre nós e é nessa premissa e nessa única que devemos basear qualquer sistema ético candidato a regular os destinos da Humanidade. Este é o ponto em que me poderão apelidar de niilista?
Não, claro que não. “Procurar viver o mais harmonisamente possível” é um valor profundamento evangélico e com expressão noutras religiões, tal como citei pela chamada “Regra de Ouro” e pelo facto de assentar em “alguém” com quem viver harmoniosamente, não assenta no “nada” e, por isso, no niilismo.
Qualquer sistema ético que baseia o respeito dos Homens entre si na reverência e no temor a um ser maior que eles, o qual os julga e castiga pelos seus actos mais incorrectos não pode ser um bom sistema.
O ateísmo de Russell nega um Deus castigador, eu também nego. Isso faz de mim ateu? Claro! Mas do Deus concebido por Russell, não do Deus de Jesus Cristo. O último não pode ser negado enquanto não for conhecido.
a desresponsabilização induzida pela figura do Mal personificada nos anjos maus e no seu chefe – um tal de Satã
Sempre me ensinaram na Tradição Católica que o Mal personificado que nos despersonifica existe e é real, mas também que não está em tudo. Aliás, pelo facto de Deus nos ter criado livres, a escolha desse Mal é da nossa responsabilidade, logo, ao contrário do que pensa isso não desresponsabiliza, mas responsabiliza e muito 🙂
a Igreja ainda defende oficialmente a existência de uma entidade Maléfica que de alguma forma intervém nas vidas dos Homens, ou isso serve já só para escrever guiões de filmes e eventualmente satisfazer o ego a alguns sacerdotes?
A existência do Príncipe do Mal e Pai da Mentira é uma realidade, mas não da forma como é materializada nalguns filmes. Sou muito céptico de que uma acção explícita do Mal. Mas confesso saber pouco sobre o assunto.
Nisto não vou tão longe como Bertrand Russel, o qual dizia se bem me lembro que não acreditava sequer que Jesus tivesse sido o melhor dos Homens, pelo simples facto de acreditar no Inferno (como instrumento Divino para castigo dos Homens que se desviam do Caminho).
Acho que faz bem em seguir uma linha diferente do Russell porque não acredito na forma como ele põe a situação. O que é o inferno senão a ausência de tudo e pensar que a única coisa que podia ter feito era “amar”? Dizia um santo que entre a ponte e o rio (referia-se à história de alguém que se tinha suicidado) existe o abismo da misericórdia de Deus, logo, não sei se haverá alguém no inferno, mas muitos no purgatório é possível. Contudo, estou a especular.
Quando cheguei a esse ponto do meu percurso, preferi deitar todo o pacote fora e reconstruir por mim próprio. E penso que aproveitei algumas coisas…
Compreendo. Sozinho até podemos chegar mais rápido, mas juntos acho que vamos mais longe 😉
O que reformulei para mim foram as motivações e os princípios sobre os quais procuro basear e acreditar na mensagem do Amor ao Próximo. E ainda que nunca tenha posto isso por escrito, creio que o princípio em que devemos apoiar essa prática do Amor ao próximo deve pura e simplesmente basear-se na constatação de que tudo quanto temos de mais valor é termo-nos uns aos outros. E nada mais.
Belo!!
A minha questão é só a seguinte: para que precisamos de Deus nesta equação? Não nos bastamos a nós próprios para chegar a essa fraternidade em que os sentidos das nossas existências se entre-alimentam?
Uns bastam-se a si próprios, outros precisam de Deus como o ar que respiram. Penso que todos podem estar certos porque importa muito a experiência pessoal dessa fraternidade universal que todos podemos construir e onde as convicções do outro me ajudam a viver melhor as minhas e reciprocamente. Se todos fossemos sal, a sopa não tinha sabor. Se todos fossemos fermento, o bolo seria horrível. Por isso, não há nada melhor do que a unidade na diversidade, não acha? É algo que exploro no meu livro.
Várias das ideias abordadas nos comentários anteriores mereceriam uma continuação. Ater-me-ei no entanto a uma questão que procurei já anteriormente lançar ao falar do tal carácter codificado da Bíblia Cristã.
1) Qual é o valor que o Miguel atribui aos contéudos dos textos bíblicos?
Os textos bíblicos têm todos igual valor para os crentes como o Miguel, nomeadamente na dualidade Velho Testamento / Evangelhos?
2.1)
Qual é a explicação para não se dever ler a Bíblia de forma literal? Decorrerá isso de alguma imperfeição nas pontes de auto-comunicação de que o Miguel falava no seu comentário anterior que depreendo que sejam a explicação para as experiências Religiosas profundas descritas na Bíblia?
2.2)
Quanto a essas pontes de autocomunicação, porque é que só uma minoria de pessoas são selecionadas pela sorte – curiosamente existem poucas mulheres seleccionadas ao longo das histórias da Bíblia. Porque será?)? Ou é essa selecção feita por desígnio insondável do tal ser Absoluto? A ser este último caso, como se pode compreender que Ele escolha apenas alguns em detrimento de outros ou melhor ainda de todos nós?
Quando se começam a fazer perguntas destas, parece não haver fim para a quantidade delas. Basta ficar a pensar sobre os “defeitos” da criação, nomeadamente no que diz respeito ao sofrimento Humano e dos restantes animais… Para qualquer uma destas perguntas, não encontrei respostas Humanamente compreensíveis ou aceitáveis no discurso Religioso.
3)
Por último, estas perguntas de foro teológico não o incomodam tanto como o incomoda a falta do Absoluto nas vidas dos Ateus? Note que esse vazio é no entanto uma opção consciente e difícil e deve por isso ser respeitada. Nalguns comentários que faz a este niilismo, parece-me que menospreza de alguma forma esta opção de vida. Mas acho que é uma opção tão respeitável como a das pessoas que decidem pela não ruptura, mesmo quando conscientes das dificuldades que levantam os dogmas do seu Credo, tanto quanto o é ainda a postura das pessoas que nunca meditaram sequer sobre tais questões.
Quanto à dificuldade de rejeitar uma educação religiosa tradicional, falo por experiência própria. Não foi para mim um período pacífico o que me levou a rejeitar aquilo que me tinham ensinado ao fim de um processo que durou alguns anos. Ao pensar sobre isso, não posso deixar de estar em completo acordo sobre os malefícios da educação dogmática das Religiões. E esse é precisamente um dos pontos em que o Ludwig tanto insiste em vários dos posts sobre estes assuntos do seu blog ktreta.
Creio que não consegui substituir o vazio deixado pela rejeição dos dogmas da minha educação religiosa. Pelo menos até ao fim da minha adolescência, esse vazio era notório. Neste momento, nem tenho tempo para pensar nisso. Ultimamente, ao descobrir o blog do Ludwig, apercebi-me de que o interesse por estas questões não morreu completamente. É no entanto raro encontrar do lado dos crentes algum comentário digno de interesse. A maioria deles apenas têm o efeito de divertir enquanto se tem tempo e paciência (o Ludwig parece ter muito de ambos!).
O mérito deste reencontro com o tema foi para mim descobrir que talvez tenha finalmente aprendido a viver sem crenças num Absoluto que tudo explica. Tê-lo-ei substituído pelo amor e preocupação que sinto para com os meus filhos? Não sei dizer. Voltará esse vazio a fazer-se sentir com a idade e com o sentir da aproximação da morte como acho que já ouvi dizer a algumas pessoas? Não posso assegurar que não, mas não me preocupa neste momento.
Apraz-me entretanto perceber através destas curtas “conversas” consigo, que a discussão do tema já não é para mim tão pesada como o era nos meus 16 anos. Pela sua disponibilidade e pelo valor terapêutico que esta troca de comentários no seu blog teve para mim, deixo aqui o meu agradecimento.
ass.
João Roseira Borges (mais um gajo neste mundo super povoado de almas errantes)
Caro João Borges,
é um prazer imenso poder ler os teus comentários. Ao contrário do Ludwig, sinto em ti uma abertura para aquilo que considero um diálogo autêntico, como diria Massimo Cacciari «o crente vive continuamente no não-crente e o não-crente vive continuamente no crente» porque aquilo que une ambos é a dúvida, e a procura de respostas podemos sempre fazê-la juntos. Por outro lado, o que considero diálogo não implica necessariamente a mudança de opinião ou de posição daquele com quem procuro dialogar, mas antes, no diálogo com uma convicção diversa deveria aprofundar melhor a minha e reciprocamente. É esta a verdadeira unidade na diversidade.
As tuas questões são excelentes! Naturalmente não me sinto suficientemente competente para respondê-las com toda a profundidade, mas também comentários em blog são para isso mesmo: responder com o que parte do nosso interior e da nossa experiência pessoal.
Qual é o valor que o Miguel atribui aos contéudos dos textos bíblicos?
Muita, como seria de imaginar. Mas penso que devem ser, sobretudo, traduzidos em vida, de tal forma que num futuro, se todas as Bíblias do mundo desaparecessem seria possível reescrevê-la olhando para a vida de cada Cristão, incluindo as partes menos compreensíveis cuja razão advém da pergunta que se segue.
Os textos bíblicos têm todos igual valor para os crentes como o Miguel, nomeadamente na dualidade Velho Testamento / Evangelhos?
Sim por uma razão apenas. Nada na Bíblia deve ser vivido ou interpretado sem que o seja à luz do Mistério (não enigma) de Jesus Cristo. Fora desse contexto estaremos sempre sujeitos a interpretações enviesadas, sobretudo aquelas dos textos veterotestamentários mais difíceis de compreender. Contudo, não deixa de haver questões difíceis na interpretação de alguns textos, pelo que muito trabalho exegético há a fazer e que tem vindo a ser feito. O importante seria que esse trabalho fosse traduzido em pastoral, isto é, que se tornasse acessível a todos, o que nem sempre acontece.
Qual é a explicação para não se dever ler a Bíblia de forma literal? Decorrerá isso de alguma imperfeição nas pontes de auto-comunicação de que o Miguel falava no seu comentário anterior que depreendo que sejam a explicação para as experiências Religiosas profundas descritas na Bíblia?
A mim parece-me simples. A Bíblia deve ser vivida e interpretada. Qualquer literalismo diminui o seu valor intemporal e espacial, pois a Bíblia é para todos independentemente do seu contexto cultural espacial e entre gerações. Ora, não é de espera que a forma como aqueles que a escreveram viam e viviam as coisas seja igual à de hoje, e aí encontro o valor da interpretação e o desvalor dado pelo literalismo. Por outro lado, aconselho-te vivamente a leitura de um discurso de João Paulo II sobre a interpretação bíblica que me parece muitíssimo esclarecedor. Neste sentido, evitar interpretações literais não decorrem de “imperfeição nas pontes de auto-comunicação”, mas do valor da “interpretação” cuja riqueza está no seu aprofundamento.
Quanto a essas pontes de autocomunicação, porque é que só uma minoria de pessoas são selecionadas pela sorte – curiosamente existem poucas mulheres seleccionadas ao longo das histórias da Bíblia. Porque será?)?Ou é essa selecção feita por desígnio insondável do tal ser Absoluto? A ser este último caso, como se pode compreender que Ele escolha apenas alguns em detrimento de outros ou melhor ainda de todos nós?
Eu penso que tendemos a ver esse processo de “selecção” como fruto de mérito ou porque uns são “mais importantes” para Deus que outros. Se assim se pensar, estaremos equivocados. Existem sim pessoas cujo coração (entenda-se, todo o seu ser) está mais aberto à escuta de Deus que outros. Nesses Deus fala mais claramente, simplesmente porque estão mais abertos à Sua auto-comunicação e à acção de Deus neles. Nesse sentido, Deus escolhe “todos”, mas apenas alguns respondem com a sua vida a Ele. Deste ponto de vista, o papel da mulher não é de todo menor, bastando para isso pensar que o Mistério da Encarnação esteve dependente de uma mulher! Por outro lado, basta ler o que o Papa João Paulo II escreveu durante o seu pontificado sobre as mulheres para perceber como eram e são importantes na vida dos Cristãos desde sempre. Quantas Santas não foram seguidas por homens, e o são ainda? Santa Catarina de Sena, Santa Teresa de Àvila, Santa Teresa do Menino Jesus, entre muitas outras. O Movimento dos Focolares do qual faço parte tem como presidente uma mulher leiga. Quando Chiara Lubich, a fundadora, expressou este desejo a João Paulo II, isto é, de que a presidência do movimento fosse sempre a cargo de uma mulher, a resposta foi “oxalá!”. Ainda, se aprofundarmos a Teologia do Corpo desenvolvida durante 4 anos por João Paulo II, cedo descobriríamos o quanto equivocados poderemos estar sobre o papel fundamental que tem a mulher na Igreja Cristã, em particular, a Católica.
Basta ficar a pensar sobre os “defeitos” da criação, nomeadamente no que diz respeito ao sofrimento Humano e dos restantes animais… Para qualquer uma destas perguntas, não encontrei respostas Humanamente compreensíveis ou aceitáveis no discurso Religioso.
A presença de dor, sofrimento e morte é um assunto bastante sério e desafiante para confrontar com um Deus que cria o mundo do nada por amor. Escrevi recentemente um artigo sobre isso que sairá na revista Cidade Nova, bem como num número seguinte irão aparecer algumas questões suscitadas pelo artigo, por exemplo, sobre a omnipotência de Deus, às quais procuro apontar uma resposta. Se quiseres poderia enviar-te por email. Existe também um ou dois capítulos do meu livro Percursos.com onde abordo esta questão, também do ponto de vista da natureza onde se incluem os animais. Basicamente, temos uma tendência de pensar Deus como alguém exterior e observador do sofrimento no mundo, em vez de pensarmos em Deus como Alguém que “sofre-com” quem sofre e, por isso, está presente, imanente, aos sofrimentos do mundo. Adiantar muito mais seria demasiado extenso, mas se quiseres envio-te os artigos por email.
Por último, estas perguntas de foro teológico não o incomodam tanto como o incomoda a falta do Absoluto nas vidas dos Ateus?
Precisamente! Esse tem sido a génese de muito do que tenho escrito ultimamente no blog do Ludwig.
Nalguns comentários que faz a este niilismo, parece-me que menospreza de alguma forma esta opção de vida.
Muito pelo contrário, apenas questiono se o ateu que opta por ela, vive-a em profundidade e qual a experiência dessa vivência.
Não foi para mim um período pacífico o que me levou a rejeitar aquilo que me tinham ensinado ao fim de um processo que durou alguns anos. Ao pensar sobre isso, não posso deixar de estar em completo acordo sobre os malefícios da educação dogmática das Religiões.
As experiências neste campo são, de facto, muito diversas, pois a minha é precisamente a oposta e não é por isso que não questiono dogmas, mas sinto que apenas os posso questionar depois de os viver intensamente e depois de os estudar se necessário para compreender melhor o seu sentido e significado.
O mérito deste reencontro com o tema foi para mim descobrir que talvez tenha finalmente aprendido a viver sem crenças num Absoluto que tudo explica. Tê-lo-ei substituído pelo amor e preocupação que sinto para com os meus filhos?
Talvez não João. Se chamar a esse “Absoluto” de “Amor”, aquele que nutre pelos filhos e pela esposa será apenas uma manisfestação daquilo que verdadeiramente somos: “somos-amor”. Ao contrário do “niilismo”, folgo por ver que o João opta pelo “amorismo”. Essa é também a minha opção cujo niilismo que comporta é somente aquele em que me faço nada para ser dom-total-de-mim-mesmo aos outros por amor. Nem sempre é fácil, mas vale bem a pena …