No dia 15 de Agosto a Igreja Católica celebra a festa da Assunção da Virgem Maria ao Céu. Este dogma de fé afirma que Maria, a mãe de Jesus, no final da sua vida foi elevada em corpo e alma, na sua unidade indivisa, até ao Céu. Na prática implica que o seu corpo não foi enterrado, mas elevou-se “à glória da vida eterna, na plena e perfeita comunhão com Deus” (da Homilia de Bento XVI 15.08.2010). Algo semelhante ao que terá acontecido a Jesus aquando da Ressurreição.
É verdade que ciência e fé dependem de uma revelação contínua. A primeira da revelação dos enigmas que permeiam o cosmos, a segunda dos Mistérios que exigem de nós o acolhimento da fé como um dom para depois os encarnar no quotidiano. Sempre que se dá um passo em frente em ciência surgem sempre novas questões e sempre que se lê um dogma à luz de uma nova compreensão científica é necessário aprofundar a sua interpretação, o que no tempo se exprime pela história dos dogmas. Por isso, o Dogma da Assunção da Virgem Maria é, sem dúvida, um desafio para o diálogo entre ciência e fé.
Pode este dogma implicar uma violação ou suspensão das leis naturais? Se o corpo de Maria não foi enterrado, para onde foi? Em posts anteriores afirmei que os milagres não violam ou consistem numa suspensão das leis naturais, mas desafiam, sim, a nossa visão do mundo, propondo uma cultura de vida, em vez de uma cultura de morte. Neste sentido, o desafio consiste em relacionar a verdade que encerra com a sua adequação à experiência de vida, bem como as suas implicações. A primeira questão que me coloquei foi: o que é mesmo um Dogma?
Karl Rahner num artigo sobre o “Cristão do Futuro” reflecte numa secção sobre “o elemento mutável na doutrina da fé” afirmando que
«Um tal dogma da Igreja é verdadeiramente imutável, i.e. não pode cessar nunca de estar ligado à consciência do Católico, mesmo com um acto da Igreja. Só jornalistas muito mal instruidos em teologia poderiam supôr que o Vaticano II pudesse (…) revogar, [por exemplo], o dogma da Imaculada Conceição ou a Assunção da Abençoada Virgem Maria. (…) Mas a imutabilidade do dogma da Igreja não exclui, pelo contrário, implica que existe uma história dos dogmas. Essa história não existe apenas por ser necessária uma grande quantidade de tempo, desenvolvimento teológico e clarificação …»
Então, em que consiste uma história dos dogmas se estes são imutáveis? Segundo Rahner a resposta está no significado do dogma que implica poder ser pensado melhor, com maior claridade e, sobretudo, livre dos mal-entendidos que o podem acompanhar espontaneamente, e de que anteriormente não havia consciência, de tal modo que a sua conexão com outras verdades de fé se torna mais explícita. Um dogma com história move-nos em direcção à totalidade do seu significado e unidade com a totalidade da fé na base Última onde assenta. Um exemplo desta historicidade é o dogma do pecado original iniciado por Santo Agostinho (e muito relacionado com o da Assunção) e que hoje assume um peso completamente diferente na vida religiosa (ver J. Ratzinger, “No Princípio Deus criou o Céu e a Terra”, Principia, 2010), muito mais profundo e com implicações maiores para com a ontologia (natureza da existência) do que antes. Isto devido a uma interpretação teológica mais exacta e, certamente, com o contributo científico sobre a evolução biológica. A verdade essencial do dogma mantém-se a mesma: fomos criados à imagem e semelhança de Deus, que é Relação, logo a morte que esse pecado original introduz é uma morte relacional. Cada ser nasce num mundo de relações danificadas, em particular, a relação primordial do ser humano com Deus, logo, salvar o ser humano do pecado original é re-estabelecer a sua plena comunhão com Deus, mesmo através dos outros e da própria natureza, uma vez que Deus está em todos imanente. Assim, um dogma só cessa na visão e comunhão plena com Deus.
Voltemos à Assunção de Maria ao Céu. Irei basear-me na homilia feita por Bento XVI este ano de 2010. O núcleo de fé neste Dogma afirma que Maria é preservada da corrupção do sepulcro, tendo vencido a morte, tal como aconteceu com o seu filho Jesus, e se acredita que acontecerá connosco no fim dos tempos, e, por isso mesmo, Maria triunfa na glória da plena comunhão com Deus em corpo e alma na sua unidade indivisa.
A primazia do dogma está na ressurreição de Cristo. O que quer que se tenha passado com Jesus, passou-se também com Maria. Um evento que incide sobretudo na vitória de Deus sobre o pecado e a morte, ou seja sobre a ausência total de relação no amor. Bento XVI afirma como este dogma se torna mais claro com um pensamento de São Paulo que relaciona o primeiro ser humano (Adão, Adamah) com o “novo” Adão, Jesus, pois, enquanto o primeiro indica-nos como somos incorporados biologicamente num mundo que gera a morte e – diria – se gera na morte, enquanto a novidade do Mistério da Ressurreição é sermos incorporados na vida como plena comunhão com Deus. A passagem de uma incorporação para a outra é uma transformação radical da nossa visão do mundo, mas também da nossa noção de corporalidade espiritualizada ou espírito corporalizado. Uma transformação de uma cultura de morte para uma cultura de vida.
Bento XVI refere ainda que as raízes desta antecipação da vitória última sobre a morte na Virgem de Nazaré estão na sua fé que se exprimia na obediência à Palavra de Deus e no abandono total à iniciativa da acção divina. Qual a lição espiritual que podemos tirar desta fé que levou Maria a preceder-nos na ressurreição dos mortos que experimentaremos no último dia? Em acordo com o que afirma Bento XVI «somos chamados a observar quanto o Senhor, no seu amor, quis também para nós, como nosso destino final: viver através da fé na comunhão perfeita de amor com Ele e viver assim verdadeiramente». Esta experiência que vivemos escatologicamente (numa espécie de “já, mas não ainda”) possui implicações na vida religiosa e, consequentemente, na vida concreta de todos os dias. Que implicações? Para mim, ser uma outra Maria seguindo os seus passos como uma criança faz numa praia ao seguir os passos da mãe que vai à sua frente.
Há ainda um aspecto do Dogma para o qual Bento XVI chama a atenção: a assunção à glória celeste. Isto implica o termo “Céu” e poderemos nem todos estar cientes do que isso significa. Se me perguntassem o que é o Céu, teria respondido “é o lugar de encontro com Deus numa comunhão plena de vida”. Não penso num lugar qualquer no universo conhecido ou desconhecido. Penso numa dimensão da realidade que está para além da material, que a transcende, e que dá sentido à experiência da fé vivida na materialidade. Bento XVI, pensando na questão material associada ao Dogma afirma
«nós todos experimentamos que uma pessoa, quando está morta, continua a subsistir de qualquer modo na memória e no coração daqueles que a conheceram e amaram. Podemos dizer que nesses continua a viver uma parte desta pessoa, mas é como uma “sombra” porque esta sobrevivência no coração desses está destinada a acaba
r. Pelo contrário, Deus não passará mais e nós todos existimos pela força do Seu amor. Existimos porque Ele nos ama, porque Ele nos pensou e nos chamou à vida. Existimos nos pensamentos e no amor de Deus. Existimos em toda a nossa realidade, não apenas na nossa “sombra”. A nossa serenidade, a nossa esperança, a nossa paz fundam-se nisto mesmo: em Deus, no Seu pensamento e no Seu amor, não sobrevive apenas uma “sombra” de nós mesmos, mas n’Ele, no seu amor criador, somos protegidos e introduzidos com toda a nossa vida e com todo o nosso ser na eternidade. É o seu Amor que vence a morte e nos dá a eternidade e é a este amor que chamamos: “céu”».
Até aqui esteve implicitamente presente a questão científica, mas tratou-se sobretudo do valor da questão teológica para a nossa vida. Qual a dificuldade de um não-crente, ou ex-crente, perante este Dogma? A dificuldade não está no Dogma em si mesmo, mas na relação entre a visão do mundo que tem e aquilo que o Dogma expressa. Para a maior parte dos não-crentes ateus, ou ex-crentes agnósticos, a visão do mundo que melhor descreve a sua experiência de vida é um naturalismo humanista, ou também conhecido por humanismo científico. A tese que subjaz a esta visão do mundo é a de que o mundo natural investigado pelas ciências naturais é tudo o que existe, a única realidade e, por isso mesmo, as ciências naturais são a única forma de adquirir conhecimento do mundo real. Wilhelm Dilthey argumentou que uma visão do mundo não pode ser provada ou refutada, uma vez que essa é a base da prova ou refutação (in O. Thomas, “The Atheist Surge”, Theology&Science, 8, 2010). Assim, qual a resposta que pretende um ateu à questão de “como” Maria se elevou ao “céu”? Pretende uma resposta de acordo com o mundo natural e explicada segundo as ciências naturais. Porém, o “céu”´não é um lugar no universo tal como afirmamos atrás! Logo, a explicação que pretende não será obtida porque não faz sentido aplicar o método científico-natural a um objecto formal teológico que não faz parte do seu campo de acção. Muito simplesmente, “it’s missing the point …”
O problema que se pode colocar é, então, “como” é que um corpo material “se eleva” a uma dimensão que transcende a natural, deixando de existir nela? Como o Dogma da Assunção da Virgem Maria assenta na Ressurreição de Cristo, e como depois dessa, deixámos de saber propriamente o que é corpo, assiste-se pela primeira vez na história do universo a uma unidade indivisa entre matéria e espírito, anulando esse dualismo, e a questão que me coloco é: o que se entende por corpo no quadro da Ressurreição? São Paulo fala-nos de uma semente que só morrendo pode dar lugar a uma flor para nos dar uma imagem do que possa significar a transformação que se dá na Ressurreição. Logo, metaforicamente, o que sou capaz de afirmar de momento, reflectindo a forma como vivo este Dogma, é que o meu corpo-semente, quando morrer e for lançado à terra, nos últimos tempos será transformado num corpo-flor cuja existência assenta apenas numa só coisa: a Comunhão na Trindade.
“Como” o justifico? Não sei, permaneço à boa maneira da teologia Cristã, e segundo um espírito científico … na dúvida. Essa que provém da experiência de fé e me mantém nela em busca de uma maior profundidade no conhecimento da realidade criada …
(as tradução são da minha responsabilidade, logo, não são oficiais)
gostei do seu blogue
Caro Sofrologista Católico,
obrigado pela tua apreciação e comentário 🙂
Talvez a pergunta mais relevante a fazer seja: como replico a experiência de Maria? Ou seja: o Dogma apresenta a noção de que «aquilo que aconteceu a Jesus, também aconteceu a Maria», ou, por outras palavras, é possível replicar a experiência de Jesus em vulgares seres humanos.
Então qual é o método?
Se é reprodutível, onde estão os resultados? (Se não fosse reprodutível, qual seria o interesse em afirmar que o processo só funcionou para uma única pessoa depois de Jesus?)
Como venho de uma tradição filosófica muito diferente mas que estuda os mesmos pontos, afirmações como a de S. Paulo não são «novidade»; a noção de continuidade de vida após a morte é bem ilustrada pela noção semente/rebento/planta/flor/fruto/semente, etc., em que um desaparece para dar lugar ao outro. Isto é uma tentativa, via metáfora ou analogia, de explicar que o processo não é tão «anormal» (ou «supranatural») como parece ser, o que, por sua vez, deve dar confiança ao crente de que é, de facto, possível «chegar lá», e que existe alguma lógica nessa possibilidade.
Até aí tudo bem. Mas continuo teimosamente a perguntar então: qual é o método? E quantas pessoas o aplicaram e obtiveram o mesmo resultado de Maria? Se o método não está escrito nos Actos dos Apóstolos, e, logo, não houve uma sequência ininterrupta de mestres e discípulos que o aplicaram — todos eles tendo atingido o mesmo estado que Maria atingiu — como é que chegou aos nossos dias, e, mesmo que tenha chegado, como sabemos que funciona, se aparentemente a única pessoa que aplicou o método e atingiu o mesmo resultado depois de Jesus foi Maria?
De notar ainda que Jesus fez «batota» porque já era Deus à partida 🙂 Maria, pelo contrário, é suposto ter sido 100% humana. Logo, o método que ela usou funciona ainda melhor do que o de Jesus — pois Maria não precisou de ser também Deus (e fazer parte de uma hipotética Sagrada Tetraidade) para aplicar o método. Logo, esse método deve funcionar em todos nós também. Por isso deve-nos ser útil. Como tal, é plausível que tenha sido transmitido pelo próprio Jesus (que alegadamente só nos transmitiu coisas úteis) e provavelmente reforçado por Maria, que pôde confirmar a sua aplicabilidade.
Onde está então esse método?
Será o método importante? Ou o porquê do acto em si mesmo? Sendo Maria uma figura de extrema importância na época, não seria venerável o seu túmulo, como é o de S. Pedro, S. Tiago, S. Paulo e tantos outros?
Penso que aprofundar o sentido e significado do evento aproxima-nos mais de uma compreensão do mistério que encerra, do que nos preocuparmos com o método para o replicar. É como se quisesse replicar uma Obra de Picasso, ou Van Gogh… para quê?
Obrigada Miguel por esta belíssima reflexão !
Muitas vezes penso que a noção de limite é muito útil para compreender a relação (ou ausência dela) entre ciência e fé. Se temos a capacidade de conhecer a ‘realidade'( ou parte dela) através dos sentidos e da razão, em que sentido colocaríamos a ‘alma’ ,o amor ( não o sentimental) e qual o seu campo de ação ?
Não será arrogância dar à ciência a preponderância do conhecimento se sabemos o quão limitados somos? Se um invisual não sabe a cor do mar porque não teve nunca a capacidade de o ver significa que não existe?
É assim tão difícil conceber uma interação entre dimensões diferentes mas co-existentes? Será o tempo linear…ou é a nossa necessidade de organização que criou um padrão sob o qual nos estruturamos? Isso significa que a realidade não pode estar contida num tempo eterno que provavelmente pressupõe que o passado,presente e futuro coabitem em contemporâneo ? Viveremos nós num fragmento de eternidade que, à semelhança da vida de Jesus compreendida a partir da ressurreição , terá leitura definitiva no final dos tempos (nossos)?
Poderá o Amor que espalhamos nas nossas vidas prolongar-se para além de nós, à semelhança de S Francisco, para dar só um exemplo?
Se essa co-existencia de dimensões chega a uma sintonia de identidade total, não vejo dificuldade em compreender que um corpo físico ( pertencente num determinado tempo a uma determinada dimensão ) , como o da Maria, possa passar a um estado de ‘outra dimensão’ e a um tempo eterno , justificando o momento da assunção ,e também eventualmente das aparições que,neste contexto, não me surpreendem.
Poder-se-à entraver também alguns êxtases de santos,ou estados de bilocaçao narrados em certas histórias …
Terá Einstein chegado a tocar algum destes patamares com a teoria da relatividade?
Obrigado também a ti pela reflexão que fazes. Belíssima!
Estou cada vez mais convicto da importância de manter a mente aberta, não ter medo de colocar as questões, sem pretensão de encontrar respostas, mas antes caminhos.
Tudo no mundo parece-me fazer parte de um caminho. Uma aventura de ideias, ideais, experiências. Importa não nos acomodarmos, mas estarmos em permanente desconforto, alerta e à procura.
Obrigada! Super….de acordo!!!!