II. À IMAGEM DE DEUS: PESSOAS EM COMUNHÃO

25. A comunhão e o serviço são os dois grandes filões com que se tece a trama da doutrina da imago Dei. O primeiro filão, que vamos examinar neste capítulo, pode ser recapitulado assim: o Deus Uno e Trino revelou o seu projecto de partilha da comunhão da vida trinitária com pessoas criadas à sua imagem. Ou melhor, é por esta comunhão trinitária que as pessoas humanas são criadas à imagem de Deus. É precisamente sobre esta radical semelhança com o Deus Uno e Trino que se fundamenta a possibilidade de uma comunhão de seres criados com as Pessoas incriadas da Santíssima Trindade. Criados à imagem de Deus, os seres humanos são por natureza corpóreos e espirituais, homens e mulheres feitos uns para os outros, pessoas orientadas para a comunhão com Deus e recíproca, feridos pelo pecado e carentes de salvação, e destinados a serem conformados a Cristo, imagem perfeita do Pai, no poder do Espírito Santo.


1. Corpo e alma

26. Os seres humanos, criados à imagem de Deus, são pessoas chamadas a gozar da comunhão e a desempenhar um serviço num universo físico. As actividades derivadas da comunhão interpessoal e do serviço responsável dizem respeito às capacidades espirituais – intelectuais e afectivas – das pessoas humanas, mas não excluem o corpo. Os seres humanos são seres físicos que dividem o mundo com outros seres vivos. Implícita na teologia católica da imago Dei está a verdade profunda que o mundo material cria as condições para o compromisso das pessoas humanas entre si.

27. Esta verdade nem sempre recebeu a atenção que merece. A teologia actual procura superar a influência das antropologias dualistas que põem a imago Dei exclusivamente em relação ao aspecto espiritual da natureza humana. Em parte sob a influência da antropologia dualista, primeiro platónica e mais tarde cartesiana, na própria teologia cristã houve a tendência a identificar a imago Dei nos seres humanos com aquela que é a característica mais específica da natureza humana, isto é, a mente ou o espírito. O importante esforço para superar esta tendência passou pela redescoberta tanto de elementos da antropologia bíblica como de alguns aspectos da síntese tomística.

28. Que a corporeidade seja essencial para a identidade da pessoa é um conceito fundamental, embora não explicitamente tematizado, no testemunho da Revelação cristã. A antropologia bíblica exclui o dualismo mente-corpo. Neste aspecto, o Homem é considerado na sua integridade. Entre os termos hebraicos fundamentais usados no AT para designar o Homem, nèfèš significa a vida de uma pessoa concreta que está viva (Gn 9,4; Lv 24,17-18; Pr 8,35). Mas o Homem não tem um nèfèš, ele é um nèfèš. Já o termo basar refere-se à carne dos animais e dos humanos, e às vezes ao corpo no seu conjunto (Lv 4,11; 26,29). Também neste caso, o Homem não tem um basar, mas é basar. O termo neotestamentário sarx (carne) pode denotar a corporeidade material do Homem (2 Cor 12,7), mas também a pessoa no seu conjunto (Rm 8,6). Outro termo grego, soma (corpo), refere-se ao ser humano inteiro, pondo a ênfase na sua manifestação exterior. Também aqui o Homem não possui um corpo, mas é o seu corpo. A antropologia bíblica pressupõe claramente a unidade do Homem e compreende que a corporeidade é essencial para a identidade pessoal.

29. Nos dogmas centrais da fé cristã subentende-se que o corpo é parte intrínseca da pessoa humana e participa portanto na sua criação á imagem de Deus. A doutrina cristã da criação exclui completamente um dualismo metafísico ou cósmico, visto ensinar que no universo tudo, espiritual e material, foi criado por Deus e provém, portanto, do Bem perfeito. No contexto da doutrina da Encarnação, também o corpo é visto como parte intrínseca da pessoa. O Evangelho de João afirma que “o Verbo (Logos) se fez carne (sarx)”, para sublinhar, em contraposição ao Docetismo, que Jesus tinha um corpo físico real e não um corpo fantasma.

Além disso, Jesus nos redime através de todos os actos realizados por Ele no seu corpo. Seu Corpo oferecido por nós e o seu Sangue por nós derramado significam o dom de sua Pessoa para nossa salvação. A obra redentora de Cristo realiza-se na Igreja – seu Corpo Místico – e torna-se visível e tangível mediante os sacramentos. Os efeitos dos sacramentos, embora sejam eles mesmos principalmente espirituais, realizam-se através de sinais materiais perceptíveis, que só podem ser recebidos no ou com o corpo. Isto demonstra que não só a mente
do Homem é redimida, como também o seu corpo. O corpo torna-se templo do Espírito Santo. Enfim, que o corpo seja parte essencial da pessoa humana está implícito na doutrina da ressurreição do corpo no fim dos tempos, que permite compreender como o Homem existe na eternidade como pessoa física e espiritual completa.

30. Para manter a unidade de corpo e alma ensinada na Revelação, o Magistério adopta a definição da alma humana como forma substantialis (cf. o Concílio de Vienne e o V Concílio do Latrão). Aqui o Magistério baseou-se na antropologia de Tomás de Aquino que, inspirando-se na filosofia de Aristóteles, vê o corpo e a alma como os princípios materiais e espirituais de um ser humano individual. Podemos observar como tal posição não é incompatível com as mais recentes descobertas científicas. A Física moderna demonstrou que a matéria, nas suas partículas mais elementares, é puramente potencial e não tem nenhuma tendência para a organização. Mas o nível de organização no universo, onde se encontram formas altamente organizadas de seres vivos e não vivos, subentende a presença de uma certa forma de “informação”. Um raciocínio deste género leva a pensar numa analogia parcial entre o conceito aristotélico de forma substancial e o moderno conceito científico de “informação”. Portanto, por exemplo, o DNA dos cromossomas contém as informações necessárias para que a matéria possa organizar-se segundo o esquema típico de uma dada espécie ou ser particular. De modo análogo, a forma substancial fornece à matéria prima as informações de que esta necessita para se organizar de um modo particular. Convém tomar esta analogia com a devida cautela, dado não ser possível um confronto directo entre conceitos espirituais e metafísicos e dados materiais e biológicos.

31. Estas pistas bíblicas, doutrinárias e filosóficas convergem para a afirmação segundo a qual a corporeidade do Homem participa da imago Dei. Se a alma, criada à imagem de Deus, forma a matéria para constituir o corpo humano, então a pessoa humana no seu conjunto é portadora da imagem divina numa dimensão tanto espiritual como corporal. Esta conclusão recebe uma ulterior confirmação quando se levam plenamente em conta as implicações cristológicas da imagem de Deus. “Na realidade, o mistério do Homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarce verdadeiramente […]. Cristo […] revela o Homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime” (GS 22). Unido espiritual e fisicamente ao Verbo, encarnado e glorificado, sobretudo no Sacramento da Eucaristia, o Homem chega ao seu destino: a ressurreição de seu próprio corpo e a glória eterna, da qual participa como pessoa completa, corpo e alma, na comunhão trinitária compartilhada por todos os bem-aventurados na companhia do céu.