III. À IMAGEM DE DEUS:

ADMINISTRADORES DA CRIAÇÃO VISÍVEL



56. O primeiro grande tema no interior da teologia da imago Dei refere-se à participação na vida da comunhão divina. Criados à imagem de Deus, como já vimos, os humanos são seres que compartilham o mundo com outros seres corpóreos, mas que se distinguem pela sua inteligência, amor e liberdade, e por isso ordenados pela sua própria natureza à comunhão interpessoal. O primeiro exemplo desta comunhão é a união procriadora do Homem e da mulher, que reflecte a comunhão criadora do amor trinitário. A deturpação da imago Dei pelo pecado, com as suas inevitáveis consequências negativas sobre a vida pessoal e interpessoal, é vencida pela Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo. A graça salvífica da participação no mistério pascal reconfigura a imago Dei conforme o modelo da imago Christi.

57. Neste capítulo vamos examinar o segundo dos dois grandes temas da teologia da imago Dei. Criados à imagem de Deus para tomarem parte na comunhão do amor trinitário, de acordo com o plano divino, os seres humanos ocupam um lugar único em todo o universo: gozam do privilégio de participar no divino governo da criação visível. Esse privilégio é-lhes concedido pelo Criador, que permite à criatura feita à sua imagem participar na sua obra, no seu projecto de amor e salvação, até na sua própria soberania sobre o cosmos. Dado que a posição do Homem como governador é de facto uma participação no governo divino do mundo criado, iremos aqui falar sobre essa posição como uma forma de serviço.

58. Segundo a Constituição Gaudium et Spes, “… o Homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como Criador universal, orientar-se a si e ao universo para; de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao Homem, seja glorificado em toda a terra o nome de Deus” (GS 34). Este conceito do domínio ou do senhorio do Homem tem um papel importante na teologia cristã. Deus designa o Homem como seu administrador asiim como faz o patrão nas parábolas do Evangelho (cf. Lc 19,12). A única criatura querida por si mesma, expressamente por Deus, ocupa um lugar único no ápice da criação visível (cf. Gn 1,26; 2,20; Sl 8,6-7; Sb 9,2-3).

59. Para descrever este papel especial, a teologia cristã usa imagens tiradas tanto do ambiente doméstico como de imagens majestosas. Ao usar imagens majestosas, afirma-se que os seres humanos são chamados a governar no sentido de exercer uma supremacia sobre o conjunto da criação visível, como um rei. Mas o sentido íntimo do senhorio é o serviço, como recorda Jesus aos seus discípulos: apenas sofrendo voluntariamente como vítima sacrifical é que Cristo se torna rei do universo tendo a Cruz como seu trono. Ao utilizar imagens tiradas da vida doméstica, a teologia cristã mostra-nos o Homem como o administrador de uma casa a quem Deus confiou o cuidado de todos os seus bens (cf. Mt 24,45). O Homem pode utilizar o seu talento para aproveitar os recursos da criação visível, e exerce este senhorio participado sobre a criação visível mediante a ciência, a tecnologia e a arte.

60. Acima de si mesmo, e na intimidade da própria consciência, o Homem descobre a existência de uma lei, à qual a tradição dá o nome de “lei natural”. Esta lei é de origem divina, e a consciência que dela o Homem possui constitui, ela mesma, uma participação na lei divina. Esta lei é de origem divina, e a conciência que o Homem dela tem é, em si mesmo, uma participação na lei divina (cf. Veritatis splendor, 20). A lei natural impele a criatura racional a procurar a verdade e o bem no exercício da sua soberania sobre o universo. Criado à imagem de Deus, o Homem exerce esse domínio sobre a criação visível somente em virtude do privilégio que lhe foi conferido por Deus. Imita o domínio divino, mas não pode tomar-lhe o lugar. A Bíblia previne contra esse pecado de usurpação do papel divino. É uma grave falha moral para os seres humanos agir como dominadores da criação visível separando-se da mais alta lei divina. Agem tomando o lugar do patrão como administradores (cf. Mt 25,14s), aos quais se atribui a liberdade necessária para fazer frutificar os dons a eles confiados, e a fazê-lo com uma certa criatividade corajosa.

61. O administrador deve prestar contas da sua gestão, e o divino Mestre irá julgar as suas acções. A legitimidade moral e a eficácia dos meios empregados pelo administrador constituem os critérios desse julgamento. Nem a ciência nem a tecnologia são fins em si mesmas; o que é tecnicamente possível não é necessariamente também razoável ou ético. Deve-se pôr a ciência e a tecnologia ao serviço do plano divino para o conjunto do mundo criado e para todas as criaturas. Este plano dá sentido ao un
iverso bem como aos empreendimentos humanas. A administração humana do mundo criado é justamente um serviço desempenhado através da participação no governo divino, e a este sempre subordinada. Os seres humanos desempenham esta tarefa adquirindo um conhecimento científico do universo, cuidando responsavelmente do mundo natural (inclusíve os animais e o meio ambiente) e salvaguardando a sua própria integridade biológica.