Ao ler um livro sobre a universalidade da realidade de Cristo, deparei-me com a chamada de atenção para o modo ainda medieval que permeia muitas das nossas orações, sobretudo uma das mais importantes e fundamentais como o Credo.

«Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso…»

Colocando a tónica da paternidade divina no poder é uma visão medieval. A omnipotência de Deus não está em fazer tudo aquilo que “eu” imagino que possa fazer, mas em amar. Pura e simplesmente. O poder de Deus é o poder que vem do amor. Daí que S. João na sua Carta, cap. 4, tenha escrito que ”Deus é Amor”.

Como seria diferente, mais profundo e autêntico se rezasse,

«Creio em Deus Pai, Todo-Amoroso…»

Talvez o primeiro pensamento de muitos seja – “piroso” – mas se assim for, e se realmente Deus é Amor, estaríamos a considerar Deus piroso? Para os que se revoltam contra Deus talvez seja assim, mas para os crentes seria pela razão de que pronunciar a palavra ”amoroso” desarma-nos. Desarma-nos porque a batalha pelos ideais cristãos é, também, uma visão medieval da experiência de Deus.

Sendo Deus amor, qualquer cristão só pode ser convidado a descobrir a sua identidade nesse amor. E quem ama, não batalha, mas rende-se porque dá a sua vida pelo outro, quer acredite ou não no mesmo que ele. Mas há mais traços medievais.

«Creio em um só Senhor, Jesus Cristo»

“Senhor” vem da ideia de senhorio, de um dono da casa e quando nos dirigimos a Jesus como Senhor, é essa a carga real que empregamos na palavra. Uma total entrega da nossa vida a Jesus para que faça dela o que bem entender. Pois, acreditamos que só merece ser vivida uma vida totalmente dada a Cristo. Porém, na era medieval, o senhorio assume contornos feudais submissivos em que somos privados da nossa liberdade se quisermos sobreviver. Aliás, tenho um amigo que me dizia – ”tu não és livre porque fazes tudo aquilo que Deus manda” – ao que respondia – ”mas isso foi uma decisão minha, não de Deus. Logo, não é isso ser livre?” Mas talvez subjacente à interpelação do meu amigo estivesse esta ideia de senhorio e ausência de liberdade. Porém, isso nada tem a ver com as palavras de Simão Pedro – “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!” Por isso, não é fácil entender que realidade mais profunda, universal e transformativa se esconde por detrás da palavra “Senhor”, mas tentarei.

Jesus é Mestre, Irmão e Esposo. Sejamos realistas. O que significa hoje entregar a nossa vida a Jesus senão abrir a nossa mente à Sua inspiração por meio do Espírito Santo, ou fazer com que as nossas mãos sejam as Suas, a nossa voz a Sua, as nossas pernas as Suas, dando a nossa vida pela humanidade para sermos um só n’Ele? Isto é, não entrego a minha vida a Cristo para que Ele faça o que quiser, mas para que Ele seja em mim o que quiser, inspirando as minhas palavras e actos. Quando Jesus responde – «Porventura podem os convidados para as núpcias estar tristes, enquanto o esposo está com eles? Porém, hão-de vir dias em que lhes será tirado o esposo e, então, hão-de jejuar.» (Mt, 9, 15) – eu sinto poder rezar com toda a confiança que,

«Creio em um só Esposo, Jesus Cristo»

Sim, “esposo” é, também, uma palavra desarmante e desconfortante, mas é assim que Jesus se refere a Si mesmo – “O esposo é aquele a quem pertence a esposa; mas o amigo do esposo, que está ao seu lado e o escuta, sente muita alegria com a voz do esposo. Pois esta é a minha alegria! E tornou-se completa!” (Jo 3, 29). Jesus inverte todo o meu modo de pensar porque se o considerar como esposo, diz que me pertence. A mim, pobre criatura que deseja antes pertencer-Lhe. Assim, penso que reconhecê-Lo como Esposo é reconhecer a consagração da minha própria vida a Ele e somente a Ele, seja ao nível pessoal como ao nível eclesial. Mas há mais.

«para julgar os vivos e os mortos;

e o seu reino não terá fim.»

Com “reino” se manifesta uma visão ainda medieval. De facto, no final do ano litúrgico celebramos a festa de Cristo-Rei. E quando o Governador pergunta a Jesus se é o Rei dos Judeus, Jesus responde – “Tu o dizes.” (Mt 27, 11) -, não responde – “tens razão.” – mas reconhece-o de certo modo. Talvez seja porque o seu reino não é deste mundo – «A minha realeza não é deste mundo; se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá.» (Jo 18, 36).

É claro que se falasse “o meu país”, ou “a minha nação” em vez de “o meu reino” seria o mesmo porque Jesus dirigia-se às pessoas de uma época em que os modos de vida das comunidades humanas estava estruturadas por reinos. Hoje estamos organizados por países, ou nações (há ainda alguns reinados), mas fico a pensar se a amplitude real daquilo que Jesus queria dizer não seria maior do que o modo como o designamos nas nossas culturas.

É-me difícil, hoje, conceber Deus com um reinado, ou Cristo como Rei. Esse é um tempo que faz parte da era medieval. Mas também não consigo conceber Deus com uma nação (por mais santa que seja), ou Cristo como Presidente. Em Jesus, Deus fez-se ser humano. Se é isso em que acredito, então, é-me difícil conformar uma noção de reino a Ele quando o seu amor levou-O a esvaziar-Se de Si mesmo e tomar parte da nossa condição finita e limitada. Nesta grande e incomensorável humildade reconheço a grandeza de Deus. Por isso, expressões como “reino” ou “Rei” parecem demasiado pequenas para Deus que é Pai, Esposo e Amor.

Os reinos vão e vêm, as nações vão e vêm, mas o que permanece para sempre é a morada de Deus entre nós. Talvez seja essa morada que não tem fim. Deus quis habitar um ponto minúsculo do Universo. Teve os seus motivos e não sou capaz de os compreender, mas posso acolhê-Lo em mim e deixar que Ele habite em mim e faça de mim a Sua morada. Faça de cada um de nós a Sua morada para sermos todos uma só morada n’Ele, unindo-nos como Morada de Deus.

As famílias habitam numa só morada e como família humana, a nossa morada é este planeta que somos convidados a compreender para nele saber habitar. Talvez seja uma hipótese rezar,

«para julgar os vivos e os mortos;

e a sua morada não terá fim.»

O que deveria celebrar, então, em vez da Festa de Cristo-Rei? Talvez a Festa de Cristo-Presença.