Terei aprofundado devidamente o que vivo e penso? Será que a minha atitude se orienta por aquilo em que acredito? Terei estado tempo suficiente diante dos pobres de espírito para perceber o que é o Reino dos Céus? Ou estarei tão desatento que fiquei surdo?

Não tenho medo de duvidar por não considerar a dúvida inimiga da minha fé, mas antes um caminho que pode revelar a Boa Nova de Deus. Mas compreendo quem tenha receio de duvidar. Por aquilo que tenho aprofundado ultimamente, a dúvida pode fazer um grande serviço à fé. Por exemplo, o serviço de revelar as deficiências existentes em diversos níveis de compreensão da fé.

Por detrás de cada recusa da fé sem uma autêntica procura, estão experiências pessoais que nos levaram a ser aquilo que somos hoje. Se nas experiências que fizemos temos uma clara consciência de termos sido amados por Deus, qualquer dúvida não põe em causa esse amor, mas o modo como correspondemos a esse amor. Porém, se não temos qualquer consciência de uma experiência de amor de Deus, qualquer dúvida assenta em quê senão em… nada?

Quem tem alguma experiência de vida sabe que a explicação para diversos momentos que vivemos não é linear, mas possui várias camadas de complexidade crescente. Nunca ouviste de alguém um conselho depois de algo que partilhaste, e só te vem à cabeça o pensamento – ”não é bem assim…” Do mesmo modo que existem diferentes níveis de compreensão das nossas experiências, também o mesmo acontece com a fé.

Repara como um psicólogo entende isso ao nível mais humano e, por isso, questiona mais do que afirma. Há sempre um nível de profundidade da psique humana que pode lançar uma luz nova sobre as maiores incompreensões da nossa história. Assim é a dúvida diante da fé.

Se não questionarmos aquilo em que acreditamos, duvidando, podemos estar uma vida inteira a alimentar deficiências a diversos níveis de compreensão da fé. Por exemplo, se fosse como diz o fado, ”tenho o destino marcado,” qual o sentido e significado do livre-arbítrio? Há quem acredite que Deus “permite” o mal por um bem maior, mas poderíamos ser genuinamente livres se não tivéssemos diante de nós a escolha entre a morte e a vida?

Então, o que dizer das fatalidades por desastres naturais, ou na sequência de fenómenos totalmente contingentes? Onde está aí o livre-arbítrio? De facto, o nível de compreensão da fé como escolha não é suficiente para entender a fatalidade da casualidade. É preciso algo mais. Mais profundo. O quê?

Cada momento inesperado é a realização de uma possibilidade num espaço infinito cheio delas. Sou apenas afectado por sentir a incapacidade de lidar com a ausência de controlo desses eventos. A dúvida que suscitam dirige-se mais ao meu apego pelo bem que quero para mim e para os outros. A verdade é que todos temos alguma dificuldade em lidar com as incertezas. Diante do incerto enuvia-se a visão do todo. A Big Picture.

Gritava um pobre no Metro uma vez quando voltava para casa – ”Não tenho medo de morrer. Tenho medo de não saber viver.”A fé não é acreditar sem ver. A fé é viver. Aquele que duvida sem ter vivência na fé é o céptico que acredita no que não acredita, sem ter sequer vivido o que rejeita. Grita porque é surdo. Devemos escutá-lo, caso contrário, grita para surdos.