Que valor tem a natureza para nós?
Os dois tipos de valor mais comuns são o instrumental e o intrínseco. Quando a natureza tem para nós um valor instrumental, como diria Francis Bacon (1571-1626), “A natureza recebe ordens do homem e trabalha sob sua autoridade”, logo, torna-se um objecto nas mãos do ser humano a usar e abusar, cujo o resultado é evidente: a crise ecológica. O oposto acontece quando consideramos que a natureza possui um valor intrínseco e, por isso, deve ser vista como um “outro” a amar e cuidar.

O que significa ter um valor intrínseco?
Segundo Kant algo é intrinsecamente valioso se tiver valor em si e por si mesmo, independentemente do uso ou função que posso ter na relação com outrém (Varandas, 2003). Em termos bíblicos, poderíamos argumentar que o ser humano é a única criatura que Deus quis por si mesma (Gn 1, 26), e por isso possui valor intrínseco, eventualmente acima da própria natureza, mas o valor intrínseco neste caso é mais do isso. Sobretudo, o ser humano possui valor intrínseco por ser imagem e semelhança de Deus. Logo, imagem de quê?

Quem é Deus para que saibamos que imagem devemos ser?
Na tradição Cristã, Deus é Trindade, Deus é Amor. Sendo Trindade, é Pessoas-em-Comunhão, uma vez que “Ser Comunhão” expressa uma tal profundidade (ontológica) das relações ao ponto de sermos incapazes de ver o Pai, sem ver nele o Filho e o Espírito Santo, ou ver o Filho, sem ver nele o Pai e o Espírito Santo, ou ver o Espírito Santo, sem nele ver o Pai e o Filho. Assim, se o ser humano é imagem, qual a imagem do “em” senão o “como”. O ser humano é, na sua essência ou natureza do ser, “pessoa-como-comunhão” e o seu “dever ser” deveria espelhar o “Amor na Relacionalidade” que existe em Deus-Trindade.

E quanto à natureza?
Em primeiro lugar, o ser humano não existe à parte do cosmos, ele é cosmos (Varanda, 2007). Como diria Denis Edwards, pelo facto de sermos feitos do pó das estrelas: «a comunidade humana na Terra está interrelacionada com tudo o resto no universo, através da bola de fogo primordial, e através da origem comum que temos nas profundezas das estrelas», tal que «os nossos corpos podem ser pensados como fósseis vivos, relíquias do movimento evolucionário que começou com a primeira expressão de vida nas algas azuis e verdes, e continua em nós» (Edwards, 1992). O que significa que existe, ao menos, uma ligação intrínseca entre o ser humano e a natureza. Por outro lado, se o valor intrínseco do ser humano está no facto de ser imagem de Deus, não poderíamos pensar em algo semelhante para a natureza? 

Está escrito no capítulo X do Compêndio da Doutrina Social da Igreja dedicado ao ambiente que «se se coloca entre parêntesis a relação com Deus, esvazia-se a natureza do seu significado profundo, depauperado-a. Se, pelo contrário, se chega a descobrir a natureza na sua dimensão de criatura, é possível estabelecer com ela uma relação comunicativa, colher o seu significado evocativo e simbólico, penetrar assim no horizonte do mistério…». Num comentário a este capítulo, o físico e filósofo Sergio Rondinara afirma a realização da pessoa como a «tríplice vocação que segundo o Génesis diferencia o ser humano desde quando Deus o criou à sua imagem e semelhança (chamada à comunhão com Deus), na reciprocidade homem/mulher (chamado à comunhão com os outros seres humanos) e lhe confiou a terra (chamado à comunhão com o cosmos)» (Rondinara, 2005). Ou seja, além do ser humano ser pessoa-como-comunhão, a comunhão é também a sua vocação. Logo, pergunto: se o que nos dá valor intrínseco é sermos imago Dei, não poderíamos pensar o valor intrínseco da natureza como à imagem da nossa relação com Deus (imago vinculi nostri cum Deo)?

Se a vocação do ser humano é ser imagem de Deus, o que acontece se ele não corresponder ao seu “dever ser”? Basta olhar para a crise cultural de uma humanidade que de muitas formas danifica a sua relação com Deus e correlacionar com o dano realizado ao próprio meio ambiente. Danificada, a natureza é impedida de expressar Deus quando nos relacionamos com ela, o que nos torna incapazes de fazer uma experiência de Deus através dela, daí a importância do seu valor intrínseco associado à “relação” ou “comunhão”.  

Porém, na procura de uma maior universalidade, se quisesse reescrever o conceito de valor intrínseco de Kant, de forma a privilegiar o aspecto relacional da natureza, fá-lo-ia da seguinte forma: algo é intrinsecamente valioso se tiver valor no dom si e no êxodo de si mesmo, dependendo da sua relação com qualquer outrém. Como na natureza tudo está em relação com tudo, não resta dúvidas que possui valor intrínseco. 


– Denis Edwards (1992) Made from stardust – exploring the place of human beings within creation, Collins-Dove, p. 41.
– Maria José Varandas (2003) O Valor do Mundo Natural . perpectivas para uma ética do ambiente, apenas Editora.
– Isabel Varanda (2007) “Nem acaso, nem necessidade. O jogo como metáfora da Criação”, Didaskalia XXXVII, pp. 141-159.
– Compêndio da Doutrina Social da Igreja (2005), cap. X, pp. 287-307
 Sergio Rondinara (2005) “Custodire ciò che è salvato”. in P.Carlotti, M. Toso (eds), Per un umanesimo degno dell’amore. Il Compendio della Dottrina sociale della Chiesa, LAS, Roma,  pp. 423-444.