Neste excerto, o actual Papa Bento XVI dá-nos uma visão esclarecedora do que é o Pecado Original e a importância do conceito de ser relacional a ele associado. É uma visão moderna e consonante com a ciência. Vale a pena meditar sobre ela.

«Na história dos Génesis que estamos a considerar, existe ainda descrita uma outra característica do pecado. O pecado não é mencionado, em geral, como uma possibilidade abstracta mas como um feito, como o pecado de uma pessoa em particular, Adão, que se situa na origem da humanidade e com o qual a história do pecado se inicia. O relato diz-nos que o pecado gera o pecado e, portanto, que todos os pecados da história estão interligados. A Teologia refere-se a este estado pelo termo, certamente enganador e impreciso, “pecado original”. O que significa este termo? Nada hoje nos parece mais estranho ou, até mesmo, mais absurdo do que insistir sobre o pecado original, uma vez que, de acordo com a nossa forma de pensar, a culpa só pode ser algo de muito pessoal, e Deus não dirige um campo de concentração, no qual os nossos próximos estão aprisionados, porque Ele é um Deus de amor que liberta, e chama a cada um pelo nome. O que significa, então, pecado quando o interpretamos correctamente?

Encontrar uma resposta para esta questão requer nada menos do que tentar compreender melhor a pessoa humana. Deverá ser, mais uma vez, enfatizado que nenhum ser humano existe fechado sobre si mesmo e que ninguém vive de, ou para si mesmo sozinho. Nós recebemos a vida, não apenas a partir do nosso nascimento, mas em cada dia a partir do exterior – a partir dos outros que não somos nós, mas que fazem parte de nós. Os seres humanos possuem-se não somente em si mesmos, mas também fora de si: vivem naqueles que amam, naqueles que os amam e para os quais estão “presentes”. Os seres humanos são relacionais, e possuem as suas vidas – ou seja, a si mesmos – apenas através da relação. Eu, sozinho, não sou eu mesmo, mas apenas em ti e contigo sou eu mesmo. Ser verdadeiramente humano significa estar relacionado no amor, ser-de e ser-para. Mas o pecado significa o danificar ou a destruição da relacionalidade. O pecado é a rejeição da relacionalidade porque quer fazer do ser humano um deus. O pecado é a perda da relação, distúrbio da relação, e, por isso, não se restringe ao indivíduo. Quando eu destruo uma relação, então, este acontecimento – pecado – toca a outra pessoa envolvida nessa relação. Consequentemente, o pecado é sempre uma ofensa que toca os outros, que altera o mundo e o danifica. Enquanto isto for verdade, quando a rede de relações humanas é danificada desde o início, então, cada ser humano entra num mundo que está marcado pelo dano relacional. No próprio momento em que uma pessoa inicia a sua existência humana, o que é um bem, essa é confrontada com um mundo danificado pelo pecado. Cada um de nós entra numa situação na qual a relacionalidade foi ferida. Consequentemente, cada pessoa é, desde o início, danificada nas relações e não as realiza tal como devia. O pecado persegue o ser humano, e o ser humano rende-se ao pecado.
Mas a partir daqui não é claro que os seres humanos sozinhos não se conseguem salvar. O seu erro inato é, precisamente, aquele de quererem fazê-lo por si mesmos. Nós só podemos ser salvos – isto é, ser livres e verdadeiros – quando pararmos de querer ser Deus e quando renunciarmos à loucura da autonomia e da auto-suficiência. Nós só podemos ser salvos – isto é, tornar-mo-nos a nós mesmos – quando nos envolvemos em relações adequadas. Mas as nossas relações interpessoais ocorrem no contexto da nossa total condição de criatura, e é aí que reside o dano. Uma vez que a relação com a criação foi danificada, apenas o Criador pode ser o seu salvador. Podemos ser salvos somente quando aquele do qual nos separámos toma a iniciativa connosco e estende-nos a sua mão. Somente ser amados é ser salvo, e só o amor de Deus pode purificar o amor humano danificado e reestabelecer radicalmente a rede de relacionamentos que sofreram de alienação.»
“Pecado Original” em ‘In the Beginning …’ – a Catholic understanding of Creation and the Fall de Joseph Ratzinger (Bento XVI), T&T Clark, 1995, pp. 71-74.