Deus intervém de forma perceptível (sensível, com consequências materiais) na História?

Sim, mas estou convicto que exclusivamente através das leis da natureza. A acção de Deus no mundo é alvo de vários “capítulos” na literatura sobre ciência e religião. A questão difícil é: como Deus intervém sem intervir? Talvez este espaço virtual não seja o lugar adequado para aprofundar convenientemente o tema, mas antes uma oportunidade de lançar alguns pontos para a reflexão. Li há pouco tempo um artigo do sacerdote australiano Denis Edwards (Theological Studies, 67, pp.816-833, 2006) sobre o desenvolvimento de uma teologia não-intervencionista com base nos escritos de Karl Rahner e mesmo nesse artigo falava de vários outros estudos sobre a acção divina. A intervenção de forma perceptível referida na questão está relacionada com uma intervenção exterior. Ora, a partir da reflexão teológica, a intervenção de Deus é, sobretudo, interior, ou seja, “em, com, e através” das leis da natureza, parafraseando Arthur Peacocke. Deus age a partir da interioridade, profundamente relacional, da realidade percepcionada por nós sobre o Universo. Na perspectiva Cristã, essa acção de Deus é auto-doação, e só no quadro de um Deus relacional (LaCugna, Theological Studies, 46, pp. 647-663, 1985) é possível intervir sem intervir, privilegiando a liberdade do ser nesse espaço kénótico (do grego kénosis) de intervenção. Num espaço kénótico, Deus auto-limita-se na infinitude da base do Ser, para dar o ser a uma finitude distinta de Si, através da Sua vulnerabilidade (1 Cor 1, 25). Por isso, esta interpretação teológica da acção não-intervencionista de Deus não só entra em consonância com o conhecimento científico que se encontra em permanente desenvolvimento, como até o prevê metafisicamente, no sentido que só conhecendo, cada vez melhor, as leis da natureza podemos alguma vez aspirar a compreender a sabedoria de Deus na Criação do mundo. Deus não age como um artífice, mas sim com um pensar criador (Bento XVI em Evolução e Criação, UCEditora, p.13).

É argumentável que uma consequência material da intervenção não-intervencionista de Deus consiste na emergência da consciência humana como algo capaz de se transcender a si mesma (ir para além do tempo e do espaço) e iniciar o processo evolucionário de hominização. É o que Rahner sugere como uma “auto-transcendência activa”, ou seja, Deus interiormente presente nas criaturas em evolução, não simplesmente possibilitando a sua existência de uma forma estática, mas tornando possível que se transcedam a si mesmas a partir da dinâmica do seu interior (D. Edwards, The God of Evolution, Paulist Press, p. 89, 1999). Poder-se-ia dizer, também, que a consequência mais material, que se conhece na História, da intervenção não-intervencionista de Deus, refere-se à Incarnação d’Ele mesmo através de pó das estrelas em Jesus. Ao tornar-Se matéria, Deus santificou a matéria, “…eternamente mantendo aquela realidade material, mesmo quando a sua manifestação finita é levada à perfeição” (K. Rahner, Hominization, Herder and Herder, p.60, 1965). Daí que o “Cristianismo … necessite positivamente deste parentesco e relacionamento mútuo entre o espírito finito e a matéria, no que diz respeito à origem, história e finalidade” (Rahner, ibidem., p.61). Deste ponto de vista, o da santificação da matéria com a Incarnação de Deus em Jesus, não será o Cristão mais materialista que os “materialistas”?