Falámos da história de Adão e Eva, não é uma fábula, mas também não contém dados históricos sobre a origem do Homem, como por exemplo na história do nascimento de Jesus. Esse é um conto com características míticas. Sendo que um mito (nem bizarro, nem fantasioso) pretende explicar uma realidade humana através de uma narração. Esse situa-se “nos inícios”, não no sentido cronológico da história, mas fora do tempo histórico, e por isso mesmo presente em todos os tempos, é um voltar à essência do ser. É uma história que se faz presente de cada vez que se gera um novo ser humano.

Da história que é longa e contém em si inúmeras realidades teológicas, realçaria a origem do termo adão ha’adam, que vem da terra ‘adamah. A história diz-nos que nós como seres humanos estamos intimamente ligados à criação, ao cosmos. Não estamos no cosmos, nós somos cosmos, iguais mas distintos, porque somos também a síntese deste. O homem, adão, que Deus plasmou inicialmente não é masculino, é o humano, a humanidade, não o podemos colocar na história, é um humano que nunca existiu e que existe em cada criança que nasce.

O segundo ponto importante é a figura de Eva (é a esta altura que surge pela primeira vez Adão), com a narrativa da criação de Eva, no seguimento de que “não é conveniente que o homem (=humanidade) esteja só”, constata-se esta solidão como sinal de ausência. É verdade que o amor de Deus pelo homem preenche o homem, mas este relato quer dizer-nos que somos ser-em-comunhão, a nossa existência só é possível na relação. A figura de Eva simboliza assim a criação da humanidade como dualidade homem-mulher, como ‘ish (ele) e ‘ishshah (ela) [embora ‘ishah não seja o feminimo de ‘ish pois possui uma raiz diferente ‘nsh (=ser débil)].

A serpente. A palavra serpente nashah possui a mesma terminação que o termo «divinização», a magia, o culto estrangeiro, que enquadrada na experiência do povo de Israel pode ser interpretada como a sedução de outros cultos que quebra uma relação autêntica com Deus.
Esta serpente existe no coração de cada um. Consiste na possibilidade de escolhas diferentes da Vontade de Deus (=o que está inscrito no intímo de homem). O diálogo entre a serpente e Eva desenvolve-se apenas entre as duas. Onde está Adão? Este facto quer-nos transmitir que a falta de relação, leva exactamente à tentação e ao mal, à rotura do pacto de aliança com Deus.

Para terminar a simbologia gostaria de explorar o texto que fala daquilo que estamos habituados a entender como a punição divina, as consequências do pecado. Essas palavras “alimentar-te-ás do pó da terra – serpente – os teus filhos hão-de nascer entre dores, ficarás sujeita ao teu marido – mulher -, só conseguirás alimento à custa de penoso trabalho, porque tu és pó e em pó te hás-de tornar (=morte) – homem” são constatações, não consequências. A Serpente é maldita, Deus constata o mal desta semente no homem e não aprova. A relação homem-mulher está contaminada por conflitos de relacionamento. A relação homem-natureza está contaminada. O homem constata assim a sua situação real de mortalidade; quando se procura a omnipotência e imortalidade sozinho, descobre o facto de fazer parte da terra ‘adamah, a sua condição finita. A verdadeira “morte” está na quebra de relações com Deus, com os outros e com a natureza. Assim não devemos esperar encontrar na história que exista um animal serpente que não rasteje, ou parto sem dores, ou trabalho que não canse, ou mesmo homens imortais. Tudo isso não é fruto do pecado, mas faz parte da nossa constituição como humanos.

(comentário de Marta P. a um artigo de Gérard Rossé sobre exegese de Gn 2-3)